20.5.10

ERLI SANTOS E JOÃO PEDRO MARTINS

Paradise Now:
Descortinando (pré)conceitos e aproximando ideias

“Não chores, meu filho;/Não chores, que a vida/É luta renhida:/Viver é lutar./A vida é combate,/Que os fracos abate,/Que os fortes, os bravos/Só pode exaltar.” (Gonçalves Dias)

O Presente trabalho apresenta uma análise do filme Paradise Now, correlacionando elementos da narrativa com algumas das ideias defendidas por Lévi - Strauss . O filme transporta o (tel)espectador para um mundo pouco – ou nada – compreendido por muitos. Tem como enredo as grandes tensões entre judeus e árabes, predominando como cenário um território marcado por um sistema social falho (uma sociedade que não oferece aos seus cidadãos acesso aos bens básicos/vitais, como água, por exemplo). A sequência narrativa mostra a relação nada harmoniosa entre esses povos e territórios vizinhos. Dessa relação marcada pela imposição de uma cultura, de um sistema, em detrimento de outro, pela existência de conflitos oriundos da ideia de superioridade (bélica, cultural, política...), resultam as ações do filme.

Para costurar a narrativa, o filme mostra ,dentre outras representações, a caminhada, a vida de dois personagens: Khaled e Said. Grandes amigos, esses jovens têm o que nós poderíamos considerar como uma vida normal. Trabalham, possuem suas famílias, fumam nas horas vagas , apaixonam-se . Esse cotidiano próximo dos padrões ocidentais de normalidade se rompe no momento em que os dois são comunicados de que foram escolhidos para participar de um ato terrorista suicida. Apesar de não transmitirem em suas ações fanatismo religioso (a fé é uma das justificativas para a ação), eles se alegram com a notícia. Essa “fácil” aceitação se explica no momento exato em que Said é questionado sobre estar ou não preparado. Sua resposta imediata é “Sim, essa é a vontade de Allah.” A fala de Said, contudo, não representa uma justificativa puramente religiosa nem, também, defesa de atitude, a sequência narrativa não diz diretamente se as ações são corretas ou erradas, deixando para quem assiste a construção de um pensamento crítico acerca do assunto.

É através da sugestão e da concessão de ferramentas para uma reflexão que se propõe uma revisão do papel social dos homens-bomba. Contextualizar suas ações, mostrar seu cotidiano, descortinar as construções ocidentais , são formas de promover análises sobre os diferentes papéis que podem ser representados pelos sujeitos sociais nas mais diversas sociedades espalhadas pelo planeta. Para alcançar esse resultado, é colocada em cena a vida desses dois homens-bomba, que ,por extensão, representam os homens-bomba em geral.

Ao mostrar o cotidiano dos personagem, a narrativa promove sua humanização, aproxima o (tel)espectador dos protagonistas porque o (tel)espectador, não palestino, não homem-bomba, também trava tais relações, também vive tais experiências . Abre-se, assim, a possibilidade de entendimento do que é entregar a própria vida por uma causa. É aqui que evidenciamos a ideia de “ Relativismo Cultural” . Ao promover uma discussão sobre as questões expostas, a película exibe para quem o acompanha um debate sobre etnocentrismo.

“Para Israel, conviver com os palestinos em um sistema democrático equivale a suicídio.” (Khaled)

A exibição dos embates entre duas culturas que não se toleram, que se autoafirmam, que se atacam, mostra também, por extensão, esse tipo de comportamento entre outras culturas. Em um trecho do filme, vemos Said dizer que a última vez que esteve em um cinema foi para atear fogo nele. O motivo: um impedimento de passagem de trabalhadores da Cisjordânia para Israel. “E por que o cinema?”, indagou sua interlocutora (Suha). É fácil concordar que impedir trabalhadores de se deslocar não é correto, mas em contrapartida queimar um cinema seria a solução? “E por que nós?”, responde ele. Para eles, esse tipo de gesto é mais que correto. É heróico. Mas, e para o outro olhar?

Com base nas leituras – principalmente de Lévi-Strauss – realizadas no curso de Comunicação e Cultura, conseguimos dar os primeiros passos no sentido de promover o apagamento (total ou parcial) de nossa visão ocidental e embarcar num outro modo de encarar a vida e de vivê-la. É certo que para nós a ideia de morrer (e matar) por uma causa é absurda. É certo, ainda, que a ideia de morrer, matar e ser considerado o herói de uma nação por tal feito parece absurdo também. Mas, mesmo sendo uma opinião, classificar um costume de outra cultura como “absurdo” é comparar sem parâmetros, é ser imaturo, é ser etnocêntrico.

Dentre tantas possibilidades ofertadas pelo filme, entramos no mundo de Said . Para ele, personagem que leva a missão suicida até o final, os motivos são socialmente estabelecidos. Há também, no entanto, sua relação com os fatos, com os sujeitos, sua leitura de mundo, sua sensibilidade... No que diz respeito, especificamente, ao passado (do pai e, consequentemente, de sua família), as relações que ele trava com este momento de sua vida são bastante intensas e significativas para a tomada de decisão: O pai havia sido “comprado” por Israel e se tornado um colaborador, traindo seu povo. Tornar-se homem-bomba, dar sua vida pela causa era, assim, além de um ato de total entrega a tudo em que acreditava, (tradição, religião, política), uma forma, também, honrar sua família.

Com essa relação de herói-nação, Paradise Now sutilmente permite que interpretemos uma de suas cenas como uma metáfora do famoso quadro de Leonardo Da Vinci, A Santa Ceia. E, logo, com Jesus Cristo, que – não por acaso – se trata de um herói do ocidente que morreu lutando por uma causa. Aqui Said se aproxima mais uma vez do outro (do diferente, do ocidental, de quem não o compreende, de quem não o aceita...). Nesse momento, o diretor apresentou uma imagem que possibilita olhar para essa outra cultura com os olhos deles mesmos. Cotejar as ações do outro com as ações de uma figura heróica para nós possibilita reflexão, aprovação, negação:

“Eu concordo no sentido de Jesus Cristo para o ocidente representar a ideia de um herói que morre por uma causa. Mas eu acho equivocado o diretor tê-lo usado como metáfora para que entendêssemos o real significado dos homens-bomba pra essa nação. Existe uma diferença (que pra mim é enorme) entre você dar a vida por algo e tirar a vida de não sei quantas pessoas que - muitas vezes não têm nada a ver com a causa defendida por quem se mata. Na verdade , esse é um dos meus questionamentos sobre a relação entre o filme e o Cristianismo.” (João Pedro – um dos integrantes da dupla deste trabalho).

Ou:
“Talvez o aproveitamento seja simbólico, só uma forma de amenizar a questão do suicídio (tão pesada para nós), não dos motivos.” (Erli – outra integrante da dupla).
Outra personagem muito rica na narrativa é Suha, amiga de Said, e pessoa com que o personagem trava diálogos extremamente significativos. No enredo, é Suha a personagem que se contrapões aos demais. Além de ser filha de uma mártir, teve contato com outras culturas, nasceu na França, viveu no Marrocos e retornou à Palestina, o que possibilitou um comportamento bastante diferenciado, porque isso instrumentalizou a expansão de seu olhar. Sem dúvida, tal trajetória, deixou marcas significativas na personagem, isso fica bastante evidente no filme, ela é local e ao mesmo tempo universal. Não é sem motivos que o taxista que a auxilia na locomoção assim que chega à cidade aponta:

“Você não parece daqui. É casada?”

Ela representa na narrativa o outro foco, outra apreensão da realidade, outro olhar. Talvez o olhar homônimo ao de um (tel)espectador crítico, que tenha experimentado na prática ou teoricamente experiências mais ou menos equivalentes. Essa personagem simboliza a renovação cultural, a transformação possível das culturas, o dinamismo.

“... o problema não é saber se uma sociedade pode ou não lucrar com o estilo de vida de seus vizinhos, mas se pode chegar a compreendê-los e até a conhecê-los e em que medida.” (Lévi-Strauss – pág. 362)

O trabalho apresentado na narrativa é enriquecedor para o público que tem o privilégio de manter algum contato com ele, principalmente se conhecedor de trabalhos que debatam questões relativas ao Etnocentrismo e/ou ao Relativismo Cultural. O percurso da narrativa mostra artisticamente a necessidade de se aprimorar o olhar, exercitando essa capacidade que todos nós humanos temos, mas que nem sempre colocamos em prática. O produto final - o trabalho, o filme - no entanto, não concede ao público respostas fechadas, fórmulas solucionadoras, poções mágicas que levem agora ao paraíso. Indica, portanto, as vias que nos apontam um leque de possibilidades para reflexões que cabem ao leitor/espectador, que, a partir do contato com o outro olhar, instrumentalizou-se para produzir conclusões analíticas, principalmente se correlacionadas ao já expresso e defendido por Lévi Strauss:

“...nada, no atual estado da ciência permite afirmar a superioridade ou inferioridade de uma raça em relação a outra...” (pág. 328 )