14.11.07

| o rock brasileiro dos anos 70
| alvaro faria

Uma historia do rock brasileiro, mais ou menos contada, ao longo dos últimos 20 anos, costumava traçar, com pequenas variações, a seguinte genealogia: O rock desembarca no Brasil, temos Celly e Tony Campelo. Depois a Jovem Guarda e o Tropicalismo dos Mutantes, no final dos anos 60. Segue-se então uma rápida passagem pelo (hoje) querido maluco-beleza Raulzito, e finalmente chegamos até a Blitz e ao Rock in Rio 85. E aí sim, temos rock no Brasil! Oh yeah!
Sempre me perguntei, desde que me tornei fã de rock, onde diabos estavam os anos 70 nessa história. Ninguém mais, além de Raul Seixas e Rita Lee, haviam produzido rock em nossas terras tropicais, ao longo de uma década inteira? Esta pesquisa ― que originou a minha monografia de conclusão de curso ― é resultado direto desta indagação básica: O que foi o rock brasileiro dos anos 70? Segue abaixo um resumão de toda esta história.


Panorama Global


O rock a partir da segunda metade dos anos 60 sofreu enormes transformações. De uma música de consumo e diversão irrefletida, o rock começa a almejar a condição de arte séria. Este movimento se dá a partir do cruzamento do rock com a contracultura norte-americana. O baby boom do pós-guerra e a situação econômica favorável na América do Norte e Europa deu origem a um grande contingente de jovens universitários a partir da década de 60, os quais trouxeram para o rock a sua bagagem cultural, novas visões de mundo e novas temáticas. O rock dos anos 60 aproximou a música popular da vanguarda, quebrou barreiras estilísticas e abriu horizontes para diversas experimentações estéticas.
Com o declínio do ideário hippie, a partir de 1968, o rock tende a abrandar o seu tom de engajamento político. Os jovens músicos de rock, alimentados pelas experiências da geração anterior, lançam seu foco na pesquisa sonora e na excelência técnica. As revoluções e as grandes utopias haviam perdido espaço, os sonhos de paz e amor, pouco a pouco, perdiam seu encanto. O papel do rock, e do músico de rock, é agora o de explorar novas paisagens dentro da sua própria linguagem, a música.
A década de 1970 trás como dado novo o início da cisão do rock em diversas vertentes. A aparente unidade do rock and roll, que havia sido construída no seio do movimento hippie, começa a se dissolver, tendo originado no início dos anos 1970 duas correntes principais, mais ou menos distintas, embora não fossem ainda conflitantes ou mutuamente excludentes. São elas o hard rock e o rock progressivo.
O hard rock, o rock pesado, derivado diretamente do blues rock dos anos 60, teve entre seus precursores, por um lado o Cream e o Jimi Hendrix Experience, e bandas americanas como o Steppenwolf, entre outras; e por outro, o som agressivo ― embora pouco orientado em direção ao blues ― do Who. Desta matriz surgiram os principais nomes do hard rock setentista; o Led Zeppelin, o Deep Purple e o Black Sabath; além de muitas outras, como por exemplo, Aerosmith, Blue Öister Cult, Free, Scorpios, Gand Funk Railroad, Trapeze, Nazareth, Bad Company, Thin Lizzy, James Gang e UFO.
O rock progressivo, por sua vez, era filho direto das experiências psicodélicas mais radicais de grupos como The Beatles, Pink Floyd e The Doors. O som progressivo era uma proposta musical calcada no ecletismo. Utilizando o rock como base, buscavam inserir no estilo elementos oriundos de diferentes linguagens, como o clássico (especialmente o barroco e o moderno), o jazz e a musica folclórica. Entre os principais nomes do gênero, podemos citar: King Crimson, Yes, Genesis, Pink Floyd, Jethro Tull, Emerson, Lake & Palmer, Camel, Eloy, PFM, Gentle Giant, entre outros. O rock progressivo teve grande repercussão em toda a Europa, e também na América Latina, mas não obteve grande receptividade nos EUA.


No Brasil - Do iê iê iê ao underground


A década de 1970 começa em clima de pessimismo no Brasil. O Ato Institucional n° 5 havia levado à prisão e ao exílio vários artistas, intelectuais e ativistas políticos. A repressão era violenta e a censura produzia todo tipo de desmandos, mutilando e proibindo filmes, livros, jornais, revistas e discos.
Uma conjunção de fatores foi responsável por colocar o rock numa situação que poderíamos chamar de underground dentro do cenário da música brasileira a partir do inicio da década de 70. O primeiro é a redução da base consumidora, com a perda de grande parte do público oriundo das classes sociais mais baixas. O segundo é a boa dose de rejeição por parte dos setores formadores de opinião. E por último, a repressão praticada pelo regime militar, que olhava com suspeita qualquer tipo de manifestação cultural ligada à juventude.
O público de rock, que nas décadas de 50 e primeira metade da década de 60, era predominantemente de classe baixa e média baixa, a partir do Tropicalismo e da influência do rock mais intelectualizado que passou a ser praticado no exterior, começa a se fixar mais na classe média e média alta. O rock começa, também no Brasil, a penetrar nos círculos universitários, da mesma forma que havia feito alguns anos antes na Europa e na América do Norte.
Na década anterior, a Jovem Guarda pôde ter um enorme apelo comercial e exposição na mídia, pois o público com o qual ela se comunicava era amplo. O rock da Jovem Guarda, embora tenha causado furor nos adeptos da Bossa Nova e da chamada “Música de Protesto”, não concorria diretamente com ela. A MPB comunicava-se com um público mais intelectualizado, e por isso acabou ficando conhecida também como música de universitários. A Jovem Guarda, por seu turno, afastada das questões sérias da MPB de protesto e da estrutura sofisticada da Bossa Nova e seus derivados, tinha forte apelo popular, sensibilizando mais diretamente a juventude das classes baixas. Foi o Tropicalismo quem embaralhou os termos desta questão, e por isto mesmo causou enormes polêmicas em seu pouco mais de um ano de existência “oficial”. O Tropicalismo ousou ao mesmo tempo popularizar a MPB e intelectualizar o “Iê iê iê”.
Duas conseqüências do Tropicalismo foram, por um lado, contribuir para acelerar o esvaziamento da matriz “Jovem Guarda”, e por outro, permitiu um primeiro hibridismo entre o rock e a MPB considerada “séria”. O Tropicalismo rompeu a barreira inicial e permitiu que lentamente os fluidos do rock e do pop internacional se misturassem com a música brasileira, gerando os mais variados frutos nos anos seguintes, do Clube da Esquina mineiro até a psicodelía nordestina de Alceu Valença, Lula Cortês e Zé Ramalho.
Se a própria MPB já existia dentro de um cenário comercial mais ou menos restrito, embora possuísse grande prestígio, o que dizer então do rock, que enfrentava ainda uma boa dose de rejeição, já marcado desde sua gênese pela matriz cultural vinda do exterior. O rock passa a sobreviver entre um publico limitado, mas muito fiel e sedento por tudo que pudesse se relacionar à sua música favorita.


Friques


A juventude roqueira via-se duplamente marginalizada. A censura e a repressão do governo estigmatizavam os “cabeludas” em geral, por considerá-los “perigosos”, e ao mesmo tempo, a fatia intelectual e politicamente contestadora do regime, ligada à MPB e à cultura considerada mais “brasileira” rejeitava o rock por considerá-lo uma estética aculturada.
Além disto, cabe ressaltar que a própria “cultura rock” derivada do movimento hippie da década anterior, incentivava um certo tipo de automarginalização por parte dos fãs. Era o drop out de que falava Timothy Leary, o papa do ácido lisérgico nos EUA. A idéia de que o jovem deveria buscar uma vida à margem da sociedade convencional, tentar escapar ao máximo das amarras conservadoras, incentivava um movimento em direção a uma automarginalização.
O rock foi um dos caminhos encontrados para lidar com a sensação de abandono que o início da década de 70 trouxe ao Brasil, na esteira do AI-5, e que foi reforçada por volta de 1973 com a crise internacional do petróleo. É importante, no entanto, não superestimar este aspecto de automarginalização. É certo que nos anos 60 e ainda nos 70 o rock carregava esta mítica do outsider, mas na maior parte dos casos esta postura era muito mais ideológica do que prática. Como nos mostra Janotti, o rock historicamente sempre funcionou muito mais como um mecanismo de escape, do que como uma opção de vida em tempo integral.

O cotidiano é vivido na constante tensão entre se expressar como roqueiro e as pressões exercidas por outros espaços normativos da vida social. Dificilmente, o rock se coloca como uma opção entre um estilo de vida marginalizado ou cooptado. Na verdade, o aparato rock é um importante elemento de modulação no cotidiano roqueiro (JANOTTI, 2003: 22).

É fato que, tanto os artistas quanto os fãs de rock da época, sempre almejaram ampliar os espaços destinados ao rock na grande mídia e no show business local.


Ao vivo

Desde os “primórdios” do rock brasileiro, o grande “mercado de trabalho” para os músicos do gênero sempre foi o circuito de bailes. Tocando em torno de 4 horas por noite, em clubes e ginásios, para públicos que, por vezes, chegavam a 2 mil pessoas e sem equipamento de som adequado (na maior parte dos casos, nem mesmo microfones para voz eram usados); os bailes foram a grande escola para muitos dos nossos roqueiros desta época. Na passagem para a década de 1970, os bailes de rock começam lentamente a perder força, devido principalmente às mudanças estilísticas do rock, que se tornava uma música mais “cerebral”, menos apropriada para embalar os pares em salões. O repertorio rock vai cedendo lugar aos sucessos da black music, e com o advento das discotecas, os bailes com música ao vivo tornaram-se superados.
Os fãs de rock dos anos 70 não queriam mais dançar horas e horas. Queriam “viajar” no som de bandas tocando em palcos iluminados e com sistemas de som potentes. Os shows eram a apoteose do rock, e se fossem ao ar livre, melhor ainda.
No entanto, as dificuldades para que se realizassem shows de rock no Brasil eram imensas. Primeiramente, não havia equipamentos apropriados para este tipo de eventos, e além disso os nossos produtores estavam habituados a realizar shows de MPB, samba e outros gêneros mais “comportados”. Shows de rock, com instrumentos elétricos e público agitado, envolviam um outro tipo de estrutura e tecnologia. Para piorar ainda mais a situação, o governo militar impunha enormes dificuldades para a realização de qualquer tipo de evento jovem no país, especialmente nas grandes capitais, pois toda e qualquer reunião de jovens era sempre vistas como um “passaporte” para a tão temida “subversão”. O depoimento do cantor Ritchie[1] é bastante esclarecedor:


No final de 72 a gente ensaiou e entre 73 e 74 fizemos bastante show. Nessa época não tinha lugar pra tocar em São Paulo, então era nos teatros mesmo. O nosso show de estréia foi no Masp, Museu de Arte Moderna de São Paulo. A gente tinha o mesmo problema no começo dos anos 70. Não havia circuito de rock, éramos meio subversivos, cabeludos e considerados representantes de um gênero musical que, fora Mutantes e algumas poucas bandas, não tinha um circuito. As gravadoras não confiavam muito no repertório, mas havia público. Era muito difícil, era por amor à arte mesmo. Mas os shows eram muito freqüentados. Era tão pouca a oferta que qualquer show em qualquer canto sempre lotava.[2]

Um sonho perseguido com afinco pela nossa juventude roqueira era a realização do “nosso” Woodstock, um grande festival de rock ao ar livre, nos moldes do lendário evento acontecido nos EUA, em 1968. Muitas tentativas se fizeram, mas a repressão e a desconfiança do governo somada à precariedade do nosso show business da época só resultaram em, no máximo, sucessos parciais.
Uma das primeiras tentativas neste sentido foi o festival “Dia da Criação”, que aconteceu em outubro de 1972 no Estádio Municipal de Duque de Caxias, RJ. O evento, organizado por Marinaldo ― empresário do Módulo 1000 e um dos principais “agitadores” do rock na época ― reuniu cerca de duas mil pessoas, e teve como atrações Sá, Rodrix & Guarabyra, Milton Nascimento & Som Imaginário, O Terço, Os Brazões, Karma, Sociedade Anônima, Módulo 1000, O Grão, Diana & Stul, Liverpool, Jards Macalé, A Gosma e Faia. Muitos destes artistas não chegaram a deixar nenhum registro gravado.
O ano de 1975 marca um momento importante e positivo para o rock no Brasil. O primeiro semestre de 75 foi marcado pela realização de três grandes festivais de rock ― pelo menos para os padrões brasileiros até então. Em janeiro deste ano aconteceriam o “Hollywood Rock”, no Rio de janeiro, e o “Festival de Águas Claras”, em Iacanga, interior de São Paulo; em maio seria a vez do “Banana Progressiva”, no teatro da Fundação Getúlio Vargas, também em São Paulo.
O primeiro Hollywood Rock foi organizado por Nelson Motta, jornalista que tinha fortes contatos no meio artístico brasileiro. O festival aconteceu em quatro sábados consecutivos (dias 11, 18 e 25 de janeiro, e 1° de fevereiro) no estádio do Botafogo, localizado na Rua General Severiano, e contou com o patrocínio da marca de cigarros Hollywood, da Souza Cruz. O elenco do festival contava com Rita Lee & Tutti Frutti, Os Mutantes, Veludo, O Peso, Vímana, O Terço, Erasmo Carlos, a veterana Celly Campelo e Raul Seixas.
O festival foi filmado e posteriormente editado no longa-metragem “Ritmo Alucinante”, com direção de Marcelo França. Realizado em condições técnicas bastante deficientes, “Ritmo Alucinante” é antes de tudo um retrato pungente de todas as dificuldades de se fazer rock no Brasil da época. A qualidade da imagem é ruim e o som ainda pior. Nos créditos finais pode-se ver ainda que parte do equipamento usado no palco foi emprestado pela banda Vímana. Este procedimento era bastante comum nos shows da época. Alguns artistas mais bem equipados cediam sua aparelhagem para outros, o que também mostra, por um lado, o amadorismo da nossa cena roqueira, e por outro, ressalta o companheirismo existente entre eles ― no melhor espírito “paz e amor” apregoado em muitas das canções ― atuando para contornar as dificuldades comuns a todos. A idéia de Nelson Motta era levar o Hollywood Rock a várias cidades brasileiras, mas já a segunda edição, que aconteceria em São Paulo, foi abortada pela burocracia excessiva do governo militar.
O maior festival da época, pelo menos em termos de público, parece ter sido o de “Águas Claras”. Realizado numa fazenda no interior de São Paulo, durou um fim de semana inteiro ― exatamente como o festival de Woodstock. Em meio à natureza, uma multidão de jovens passou 3 dias curtindo o som de mais de uma dezena de artistas, incluindo nomes como O Terço, Moto Perpétuo, Walter Franco e O Som Nosso de Cada Dia. Através de uma entrevista de Peninha Schmidt ― famoso técnico de som e produtor atuante até hoje ― publicada no número 11 da revista Rock: A história e a Glória, ficamos sabendo que o festival de Águas Claras teve uma boa cobertura da imprensa, com matérias em veículos como Veja, Manchete, Revista Pop, entre outros. Peninha foi o responsável pela gravação do áudio dos shows de Águas Claras, e que seriam lançadas num disco encartado na Revista Pop, numa parceria da Editora Abril com a Gravadora Continental. A qualidade do som, mais uma vez, não era das melhores, e o projeto acabou sendo engavetado.
O último dos grandes festivais de 1975 foi o “Banana Progressiva”. Organizado pela produtora Trinka, de Fernando Tibiriçá, aconteceu entre os dias 29 de maio e 1° de junho de 1975. Depois do festival de Águas Claras e do Hollywood Rock, a repressão começou a tratar com mais dureza os eventos de rock, principalmente ao ar livre. Com todas as dificuldades que estavam começando a surgir, a Trinka decidiu organizar o seu “Banana Progressiva” num local fechado, e o escolhido foi o teatro da Fundação Getúlio Vargas. O diferencial deste festival é que ele não pretendia ser apenas um evento musical, mas sim um evento “multimídia”, como se diria nos dias de hoje. Nos anúncios do festival viam-se os dizeres: “Exposições, curtas metragem, música progressiva, rock e música popular brasileira.” Nada mais eclético e democrático. Nos quatro dias de shows apresentaram-se 17 bandas, entre elas O Som nosso de Cada Dia, Vímana, Terreno Baldio, Erasmo Carlos, A Bolha e A Barca do Sol. A imprensa, mais uma vez, criticou pesadamente.


A temporada da Banana Progressiva na GV foi um sucesso em termos de bilheteria deixando o pessoal da Trinka animadíssimo em continuar com a idéia, apesar das críticas pesadas nos jornais, dizendo que os grupos eram meras “cópias subdesenvolvidas de EL&P e Yes”, afirmando que no Brasil não se fazia Rock.[3]

Algumas outras temporadas da Banana Progressiva chegaram a acontecer depois, em outros teatros de São Paulo, como o Opus 2004 e o Teatro Bandeirantes, mas a iniciativa acabou morrendo ainda naquele mesmo ano de 1975.
Em 1976, Nelson Motta voltaria a investir num festival de rock. “Som, Sol e Surf” foi realizado na cidade de Saquarema - RJ, e uniria um campeonato de surf durante o dia e os shows musicais à noite. Enfrentando restrições burocráticas muito menores que nas grandes capitais, o festival pôde acontecer ao ar livre sem maiores dificuldades. Entre as atrações estavam Raul Seixas, Bixo da Seda, Made in Brazil e Rita Lee & Tutti Frutti, além das menos conhecidas Flamboyant, Ronaldo Rosedá y Banda, e Flavio y Spiritu Santo. Mais uma vez, a precariedade e a inexperiência dos organizadores comprometeram o evento. Nelson tentou novamente realizar filmagens e gravações de áudio dos shows, assim como havia feito no Hollywood Rock, no ano anterior. Problemas no som do palco também teriam atrapalhado a performance dos músicos, e a camaradagem novamente foi responsável por salvar as duas noites de shows, com equipamentos e instrumentos sendo compartilhados por todos os músicos. A prova maior do amadorismo da produção esta no fato de que absolutamente nenhuma promoção a respeito do show foi feita pela cidade.
A qualidade dos registros, mais uma vez, ficou muito abaixo do esperado. Acabaram sendo ambos engavetados, filme e disco, e Nelson amargou mais um enorme prejuízo em nome do rock and roll. No lide da longa matéria publicada no Jornal da Música sobre o festival de Saquarema, Ezequiel Neves nos sugere que, já em 1976, alguma coisa andava mudando no clima do rock tupiniquim: “Não, ainda não foi o Woodstock brasileiro. Mas era pra ser? Ainda é possível? Ainda tem cabimento?”[4]


Cópia, releitura, hibridação

Podemos dividir, grosso modo, os artistas brasileiros da década de 70 que eram ligados ao rock, em dois grupos. De um lado incluiríamos os artistas que tentaram absorver, em algum momento, elementos do rock em sua música de raízes brasileiras; e de outros, os artistas que faziam eminentemente rock, e apresentavam em maior ou menor grau, e com maior ou menor nível de intencionalidade, elementos brasileiros em meio a suas composições. Neste último grupo, incluiríamos também aqueles que aparentemente jamais buscaram conscientemente a mistura do rock com elementos nacionais, mas mesmo assim algo de brasileiro acabava por infiltrar-se no resultado final. Entre os primeiros, podemos incluir nomes como Alceu Valença, Zé Ramalho, Jards Macalé, Gal Costa e mesmo Milton Nascimento e outros nomes do Clube da Esquina. No segundo, os nomes mais diretamente ligados ao rock, como Rita Lee, O Terço, Raul Seixas, A Bolha, O Som Nosso de Cada Dia, Os Mutantes, O Peso, entre muitos outros.
Não custa lembrar que esta classificação, como em geral quase toda tentativa de classificar, se faz às custas de uma extrema simplificação. Alguns artistas são, de fato, muito difíceis de serem incluídos em uma ou outra categoria, tais como os Secos e Molhados, enquanto outros como Os Novos Baianos, que embora tenham partido do rock, produziram alguns dos melhores e mais marcantes sambas de toda a década de 1970, fundindo a malandragem ao “hippismo” e ao espírito “desbundado” da juventude da época.
Dois mitos que se propagaram ao longo dos anos a respeito do rock brasileiro da década de 1970 precisam ser aqui rediscutidos. O primeiro é o que afirma que a tendência “rock progressivo” foi absolutamente dominante entre as bandas da época, e o segundo é o que afirma que o rock nacional dos 70 era simplesmente uma tentativa de copiar servilmente os modelos internacionais sem nenhuma busca de fusão de elementos nacionais com a linguagem vinda de fora.
Para desmentir a ambos, basta uma rápida análise da discografia lançada na época. É fato que o rock progressivo vivia o seu auge na Europa e em boa parte do mundo ― com exceção dos EUA ― entre 1970 e 1973. No Brasil não foi diferente, sendo que aqui, com a lentidão com que as informações se propagavam na época, o rock progressivo permaneceu de certa forma “na crista da onda” até quase os fins da década de 70. A discografia do período nos mostra, no entanto, que mesmo no enxuto mercado de rock nacional, havia espaço para tendências variadas. Havia de fato bandas calcadas no progressivo, como o Som Nosso de Cada Dia, Os Mutantes pós Rita e Arnaldo, O Vímana e O Terço. Havia experiências como as da Barca do Sol, grupo que fundia o chorinho com elementos de progressivo. Mas haviam também bandas mais ligadas ao hard rock e ao rock básico, como Rita Lee & Tutti Frutti, Made in Brazil e O Peso, bandas que fundiam elementos de diversas origens dentro do idioma rock como o Casa das Máquinas e A Bolha; havia artistas com fortes elementos regionalistas, como o Ave Sangria, do nordeste ou o Almôndegas, do sul do país; e havia até mesmo espaço para artistas originalíssimos em suas propostas, como Raul Seixas, O Som Imaginário ou os Secos e Molhados.
Como exemplo, podemos citar o álbum “Criaturas da Noite”, da banda O Terço. Lançado em 1975 pelo selo Copacabana, o LP contava com arranjos de Rogério Duprat, e vendeu mais de 500 mil cópias, sendo o maior sucesso em toda a carreira do grupo. O LP continhas as canções “Hey Amigo”, “Criaturas da Noite” e “1974”, que estão entre as mais famosas da banda. A formação da banda na época era: Sérgio Hinds, Sérgio Magrão, Luiz Moreno e Flávio Venturini. Esta ficaria conhecida como a formação clássica do Terço. A entrada de Venturini trouxe maior consistência nas composições, mesclando elementos de MPB ― pois tinha ligações com o movimento mineiro conhecido como Clube da Esquina ― e também do chamado “rock rural”. Ouvindo as faixas do disco podemos perceber que O Terço era um grupo que apresentava um leque de sonoridades variado, não se limitando a uma suposta estética progressista rígida, se é que tal estética realmente existia, produzindo um som que poderíamos chamar de híbrido.
O LP abre com “Hey Amigo”, um rock básico com pitadas de hard numa sonoridade próxima à de grupos como o Deep Purple, e uma letra simples falando sobre a união de todos no rock and roll. A faixa “Queimada” trazia o som de uma viola caipira e harmonias vocais em falsete, com cheiro e sabor de Minas Gerais. “Pano de Fundo” trás uma introdução climática e algo soturna, com percussões e um solo final de Sérgio Hinds, na linha do rock latino de Carlos Santana. O rock mais progressivo começa a dar as caras no LP somente a partir da quarta faixa, “Ponto Final”. Com uma introdução de piano e vocais harmonizando em progressões algo bossa-novísticas, a música emenda depois numa evolução instrumental, trazendo solos de sintetizador e guitarra sobre uma harmonia com toques barrocos. “Volte na Próxima Semana” é mais um rock na linha hard, comandado por riffs da guitarra de Hinds e um órgão elétrico de timbre bem cheio, novamente com alguns toques de Deep Purple. A faixa-título, “Criaturas da Noite”, era uma balada com piano e arranjo de cordas de Rogério Duprat, uma valsa em ritmo 3 por 4. “Jogo das Pedras” faz talvez a fusão mais sólida, presente neste álbum, entre o clima do Clube da Esquina e a rítmica forte do rock, com harmonia rica somada a baixo e bateria bem marcados e em andamento acelerado. O LP encerra-se com a longa faixa “1974”, um épico progressivo e instrumental, com mais de 12 minutos de duração, contendo diversas passagens e mudanças de clima. A guitarra de Hinds sola em primeiro plano e com efeitos de delay que lembravam ― na medida do possível, dentro das limitações técnicas impostas pelos equipamentos disponíveis ― a sonoridade de David Gilmour no Pink Floyd. Entre as diversas partes da música é possível ouvir também momentos em que se imprimem ritmos sincopados bem brasileiros.
Com relação à “Criaturas da Noite”, a qualidade técnica da produção deste LP consegue até impressionar se levarmos em conta os trabalhos anteriores do grupo, e também outros LP’s de rock gravados no Brasil da época. Mas mesmo assim é bem nítida a distância entre a sonoridade do disco e outros LP’s produzidos em países centrais.
Como podemos ver a partir desta rápida análise, o mix sonoro do Terço era razoavelmente amplo, mas mesmo assim a banda não escapava de receber muitas críticas na imprensa especializada da época, principalmente com relação às letras. O texto de Ana Maria Bahiana, publicado na sessão “Guia do Disco”, do “Jornal de Música”, a respeito do lançamento de “Criaturas da Noite” serve como exemplo:

Esse veio com o adesivo disco-de-rock autocolado na capa, na cuca e no som. Como outros, antes. Só que, diferentemente dos outros, Criaturas conseguiu deixar passar mais música, mais beleza e mais emoção. Vale por isso, por essa semente de criação se mexendo lá no fundo do tumulto. Vale pela vontade e pelo sangue. Que tal começar a pôr idéias & texto nisso, heim? [5]

O tom das críticas é muito revelador. Se o texto das canções do Terço não atingia o brilhantismo de muitos dos nossos compositores de MPB ou outros gêneros mais “nacionais”, por outro lado sua sonoridade estava longe de ser algo banal e descartável.
Um dos maiores incentivadores do rock nacional, o Jornalista Ezequiel Neves ― que vez por outra adotava o apelido Zeca Jaeger ― era também um dos maiores críticos ao som progressivo. Em uma matéria sobre os shows da terceira e última temporada do “Banana Progressiva”, em novembro de 1975, Ezequiel comenta a respeito da apresentação da banda Veludo[6]:

O grupo do guitarrista Paul de Castro desaprendeu de forma chocante sua eficaz receita de rock-blues. Agora o Veludo entrou para o rol do som bolo de noiva, marca registrada do Terço, Mutantes, etc... Tudo de uma chatice sem limites. A competência instrumental a serviço da bobagem. O tecladista não pode ser pior e mais pomposo. Temas fantásticos totalmente jogados fora, sufocados por improvisações totalmente desprezíveis. O Veludo mereceu mesmo a vaia acontecida no Maracanãzinho antes da abertura do show de Bill Haley. O fato do Veludo, o Terço e os Mutantes estarem conscientemente batendo com a cabeça na parede, me deixa com pena é da parede.[7]

Parece insinuar-se na verdade, por trás destes textos, uma certa relação de amor-ódio entre a crítica e a produção de muitos nomes do nosso rock da época. É como se o som feito por nossos artistas mais ligados ao rock nos revelasse, por contraste, com as matrizes internacionais, e de forma mais dura, o atraso técnico em que o Brasil encontrava-se em termos de produção musical e indústria fonográfica, provocando um movimento, talvez inconsciente, de rejeição. No início dos anos 70 o padrão de gravação no mercado da Europa e dos EUA já eram os dezesseis canais, enquanto no Brasil, ainda se gravava em estúdios com apenas quatro canais. O clássico primeiro LP dos Secos e Molhados foi gravado em 1973 ainda em quatro canais. Mesmo entre a chamada crítica especializada e ligada ao rock era possível ver, certas vezes, alguma resistência velada a grupos nacionais que se autodenominavam bandas de rock, principalmente entre os mais ligados ao rock progressivo. Parecia mesmo que permanecia ainda, sub-repticiamente, um pouco do velho estigma do rock como “música para alienados”.
Por outro lado, este tipo de críticas nos dá uma noção da dinâmica dos conflitos existentes entre as diferentes concepções do que seria o rock, e do que é ser roqueiro, para o público e os intelectuais e formadores de opinião da época, mostrando que no Brasil dos anos 70, assim como no resto do mundo, começavam a surgir os conflitos e divisões resultantes do amadurecimento e da diversificação de propostas dentro do rock, contrariando até mesmo o discurso de unidade “paz e amor” propagado ainda pelos nossos roqueiros com influencias hippies.
Podemos, no entanto, entender as dificuldades técnicas de gravação da época como mais um fator gerador de uma sonoridade característica para o rock produzido no Brasil. Analogicamente ao que nos fala Paulo Emílio Sales Gomes a respeito do cinema brasileiro, podemos entender que as deficiências técnicas da nossa indústria fonográfica eram também responsáveis por produzir um resultado musical característico e singular, derivado de uma certa “incompetência criativa em copiar”. (GOMES,1996: 90)
Mesmo ouvindo discos bem produzidos para os padrões da época, como por exemplo, “Krig-Ha Bandolo” de Raul Seixas, percebe-se que as características sonoras são bem distintas dos LP’s de rock gravados nos EUA ou na Europa. Nossos artistas de rock deparavam-se com toda uma estrutura, que incluía estúdios, produtores e técnicos de som, voltada para a produção de outros gêneros musicais, como o samba, o baião, a Bossa Nova, ou canções românticas populares. A maneira de captar, timbrar e mixar os instrumentos em nossas gravações de rock acabava carregando muitas características do que era feito em outros estilos musicais, o que de uma forma ou de outra, dava aos nossos discos uma sonoridade peculiar. Algumas vezes esta peculiaridade alcançava resultados felizes, enquanto que em outros casos era simplesmente frustrante. Nelson Motta nos relata um destes casos, em seu livro “Noites Tropicais”, quando fala de sua experiência produzindo para a Philips, em 1972, o compacto-duplo “Os Novos Baianos no Final do Juízo”, do grupo Novos Baianos.

Um desastre completo. Embora as músicas fossem boas (especialmente “Dê um role”) e fossem ótimos os músicos, eles estavam ainda mais roqueiros e pesados do que no primeiro disco, tocando mais alto e mais distorcido, e foi impossível gravar o que eles tocavam com fidelidade. No pequeno estúdio de quatro canais da Philips, em cima do Cineac Trianon, eles tocaram como se estivessem em Londres, e como no Brasil ainda não se sabia gravar rock, especialmente mais pesado, a gravação ficou péssima e a mixagem uma porcaria, os sons empastelados, uma lambança sonora produzida por minha incompetência técnica, só superada pela do engenheiro de som. (MOTTA, 2000: 250).



Visões de mundo e construção de identidades

Analisando algumas canções é possível perceber a presença de questões recorrentes, ou melhor dizendo, a expressão de certas visões de mundo, ligadas à cultura rock, que aparecem freqüentemente nas letras.
A primeira destas questões, de certa forma, poderíamos chamar de uma tendência “educativa” ou “apologética” das letras. Muitas canções desenvolviam algum tipo de argumentação no sentido de convencer e provocar no ouvinte certas mudanças de comportamento, incentivando sua adesão a um estilo de vida mais “rock and roll”. Tais argumentações muitas vezes passavam por ― ou necessariamente através de ― experiências com drogas alucinógenas. As referências variavam de caso a caso, algumas mais explicitas, outras nem tanto.
Como primeiro exemplo, podemos citar a canção “Vamos tratar da saúde”, faixa da abertura do LP “Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida”, creditado à Rita Lee e Os Mutantes. A letra, simples e bem curta, fala basicamente de uma diferença fundamental entre as pessoas que “sentiram as vibrações” e aquelas que não sentiram, e recomenda a estas últimas que elas “se tratem”. As “vibrações” obviamente, é uma expressão que engloba todo um estilo de vida diverso do convencional, ligado ao rock, às drogas, à liberdade sexual e a diversas outras questões comportamentais. A metáfora médica aqui aparece sugerindo que as pessoas não ligadas a um estilo de vida rock estariam sofrendo no fundo de algum tipo de moléstia psíquica, idéia muito recorrente em manifestações do pensamento contracultural dos anos 60 e 70. O tratamento é sugerido logo depois, na imagem do chá, que graças a efeitos eletrônicos de eco aplicado sobre a voz, tem o seu sentido esfumado com a expressão “chá chá chá”, ritmo de dança de salão. Ao mesmo tempo um outro efeito aplicado simultaneamente à voz ― uma gravação da mesma voz tocada ao fundo com sua velocidade sendo progressivamente reduzida ― cria uma sonoridade psicodélica que reforça a intenção original do chá como causador de uma experiência perceptiva reveladora e diversa da cotidiana.

Vamos Tratar da Saúde
Rita Lee & Os Mutantes
Composição: Arnaldo Baptista, Elcio Decário

Sei de muita gente por aí,
que ainda não sentiu as vibrações,
mas do jeito que as coisas andam
Não vou me preocupar
Eles que tratem de se tratar!

Que tal um chá?
Pra gente se achar
Vamos "tratar" bem da nossa saúde!
Vamos "tratar" bem da nossa saúde!


Outro exemplo escolhido encontra-se na canção “Cenouras”, do segundo LP do grupo Som Imaginário. A referência à metáfora médica é ainda mais explicita aqui. O tema, mais uma vez, esta na oposição entre os que sabem viver a vida da melhor maneira, livres das amarras impostas pela sociedade conservadora, e aqueles que permanecem com a cabeça virada para o nada. Estes últimos são novamente representados como pessoas atingidas por algum tipo de moléstia, que necessitariam de uma mudança radical de comportamentos e atitudes. A “receita” recomendada, por sua vez, é das mais absurdas: eu vou plantar cenouras na sua cabeça. O vocal em falsete reforça ainda mais o clima nonsense e engraçado da faixa, embora, para os bons entendedores, a mensagem básica fosse bastante evidente.

Cenouras
Som imaginário
Composição: Frederyko

Eu hoje tenho um assunto delicado pra falar com você
Eu muito tenho meditado sobre a vida que você esqueceu
Você está com a cabeça virada para o nada e não procura
nem saber o que eu penso e o que faço

Eu acredito que você ainda tem uma pequena chance
e eu encontrei a solução pro seu caso
e lhe proponho um tratamento pra você melhorar
Eu vou plantar cenouras
Na sua cabeça

Uma segunda questão recorrente nas letras da época é a que propõe uma visão de mundo mais universalista. A idéia básica é a de que as fronteiras nacionais e culturais seriam ilusões imposta aos homens pelos poderes dominantes, e que, aqueles que compreendem a mensagem transmitida pelo rock não devem se prender a este tipo de divisões.
A faixa “Cidadão da Terra”, presente no LP “Tudo foi feito pelo sol” dos Mutantes, é um bom exemplo deste tipo de pensamento expresso nas letras de canções da época. O texto é bastante simples e mostra o desprezo às fronteiras e demarcações que possam manter os seres humanos separados uns dos outros.

Cidadão da Terra
Mutantes
Composição: Sérgio Dias / Liminha

Não sou daqui nem sou de lá sou de qualquer lugar
Meu passaporte é espacial sou cidadão da terra

E a minha vida é toda verdade
Eu não tenho mais idade
E o meu passado é o meu futuro
O meu tempo é o infinito

A minha língua é o pensamento só falo com o olhar
Minha fronteira é o coração de todos meus irmãos

Nesta mesma linha, temos também a canção “Hey Amigo”, da banda O Terço. A letra, mais uma vez é bastante simples, beirando o nonsense, mas em linhas gerais exalta uma união quase espiritual das pessoas em torno do rock. Não por acaso foi uma das canções d’O Terço que fizeram mais sucesso na época, indicando que a mensagem estava em conexão direta com os anseios dos fãs de rock.

Hey Amigo
O Terço
Composição: César De Mercês

Hey amigo,cante a canção comigo!
Hey amigo,cante a canção comigo!
É nada
É quase
É tudo

Hey amigo,cante a canção comigo!
Hey amigo,cante a canção comigo!
Metade
é parte
de um todo

Nesse rock estamos todos juntos
Nesse rock estamos todos juntos
Nesse rock estamos perto de ser
A unidade final

Outro exemplo interessante é a canção “Corista de Rock”, do LP “Entradas e Bandeiras”, de Rita Lee e Tutti Frutti. A questão universalista agora é tratada num âmbito mais cultural. A canção é uma crítica aos rótulos musicais e a restrições estilísticas, afirmando que, entre ter de escolher entre uma coisa ou outra, o melhor é poder misturá-las e “festejar de modo indiscreto” o que por ventura venha a surgir; quase um manifesto a favor da hibridação musical.

Corista de Rock
Rita Lee & Tutti Frutti
Composição: Rita Lee e Luis Carlini

Disseram que o palco não é mais aquele lugar
Mas do jeito que a gente me olha de frente
Como eu vou parar?
Pois eu sou corista num grupo de rock
Que tem pra valer
Um ponto de vista que não se limita
De ser ou não ser
Prefiro ser os dois

Não venha me dizer do meu compromisso
Com isso ou aquilo
Se o que a gente quer
Não deixa de ser um belo motivo
Pra se festejar de modo indiscreto
O que vai nascer
E todas as estórias
Que o mundo imagina pra sobreviver
Prefiro não saber

O que eu era ou sou por enquanto
É tudo aquilo que eu digo e canto
Com um pouco de espanto
Num palco ou num canto

Uma atitude bastante semelhante a esta propagada por Rita Lee, podemos encontrar numa declaração de Erasmo Carlos à Revista Rock: “Sou um homem de rock, porque foi a música que me arrepiou, mas hoje faço o que quiser”.[8]
E de fato, os trabalhos de Erasmo ao longo da década de 1970 tinham como tônica o ecletismo e a hibridação de elementos diversos, advindos do rock, do samba, da bossa-nova e ritmos latinos, entre outros, transitando com liberdade entre a seriedade e o pastiche, o humor e a crítica social. A despeito de uma imagem muitas vezes negativa ao qual ficou ligada a figura de Erasmo nos anos seguintes ― muito provavelmente por desinformação do público em geral ― o “Tremendão” foi certamente um dos artistas que mais trabalharam as possibilidades de intersecção do rock com outros gêneros musicais.
E o (nosso) Sonho Acabou.

Por volta de 1976, o rock brasileiro começa lentamente a sucumbir diante das inúmeras adversidades que enfrentava. A nova onda mundial, a Discoteca, começava a chegar no Brasil. O mesmo Nelson Motta, que havia batalhado muito pela divulgação das bandas de rock brasileiras, agora era o responsável por instalar a primeira Discoteca do Brasil, a “The Frenetic Dancing Days Discotheque”, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro.
Dinho Leme, baterista da formação original dos Mutantes, em entrevista ao site “Jovem Guarda” nos dá pistas de como era o clima naquele fim dos anos 70.

(...) Eu montei uma empresa de Comunicação para o lançamento de uns discos no Brasil. Terreno Baldio e outros que eu já me esqueci, eu e Peninha fizemos a produção do primeiro e do segundo Águas Claras. Fizemos muitas coisas pra (gravadora) Continental juntos, dividíamos uma sala eu, Peninha e um amigo chamado Tomás Figueiredo Magalhães, que também era jornalista e fazia automobilismo junto com meu irmão. (...) A partir de 1978, até o começo dos anos 80, não havia mais rock, né cara? Quando eu me vi, estava fazendo assessoria para uma casa noturna.[9]

A canção “Perdido em Abbey Road”, que abre o disco de estréia da banda 14 Bis, em 1979, também nos dá mais algumas pistas sobre o que passava pelas mentes desta geração de roqueiros que viveu os anos 70, e agora deparavam-se com a maturidade e a chegada de uma nova década.

Perdido em Abbey Road
14 Bis
Composição: Flávio Venturini e Vermelho

E os meus amigos dispersos pelo mundo
A gente não se encontra mais pra cantar aquelas canções
Que disparavam nosso coração
Estava andando pela rua quando de repente
Eu me vi perdido em Abbey Road
Onde está o caminho que me leve de volta
Onde é que eu vim parar

A menina que saiu de casa numa quarta-feira
Já voltou há muito tempo
E dela nunca mais se ouviu falar

Existe algum de nós que não conhece a dor
De se sentir sozinho perdido em Abbey Road

A nova onda de rock que chegou ao Brasil a partir de 1982, foi em grande parte iniciada por “veteranos” dos anos 70, que voltavam agora com nova roupagem e novo som. Três dos principais iniciadores do BRock, Lulu Santos, Lobão, e Ritchie, haviam participado da banda de rock progressivo Vímana, entre 76 e 78. Chegaram mesmo a gravar um disco pela Som Livre, mas que jamais foi lançado. Lulu retornaria em carreira solo, como cantor e compositor de rocks leves e baladas pop; Lobão seria o primeiro baterista da Blitz, e depois seguiria em carreira solo, fazendo sua música contundente e, em certo sentido, ligada à atitude punk. Ritchie seria um mega-astro pop durante um curto período de tempo; seu primeiro LP venderia quase tanto quanto os discos de Roberto Carlos, puxado pelo hit “Menina Veneno”. Renato Ladeira, roqueiro desde os anos 60, tendo tocado em lendários grupos como The Bubbles, depois A Bolha, e o Bixo da Seda, montava agora o seu Erva Doce, com considerável sucesso comercial. Paul de Castro, guitarrista da banda Veludo, também participaria da formação do Erva Doce. Arnaldo Brandão, também ex-integrante da Bolha, além de ter tocado com Raul Seixas e Caetano Veloso, montou os grupos Brylho e Hanoi-Hanoi. Antônio Pedro, baixista de uma das últimas formações dos Mutantes, tornou-se depois fundador da Blitz. Fábio Gasparini, que havia sido guitarrista do Scaladácida no início dos anos 70, adotou o pseudônimo Ted Gaz quando tocava com a banda Magazine.
O curioso é que quando a nova onda do BRock explodiu em 1982, puxada pelo sucesso da Blitz, pouca gente, principalmente a imprensa, queria se lembrar da cena rock da década anterior. Flávio Venturini, ex-integrante das bandas O Terço e 14 Bis, e depois sucesso da MPB em carreira solo, fala a respeito deste silêncio que a imprensa em geral dedicou ao rock brasileiro dos anos 70, durante vários anos:

Eu gostaria de falar sobre isso. Acho um absurdo que se façam várias antologias de rock brasileiro sem citar O Terço e nem o 14 Bis. Aliás, tem coletâneas dos anos 80 em que não se cita o 14 Bis, quando era a banda que mandava no rock brasileiro. A banda que mais fazia sucesso no Brasil no começo dos 80 era o 14 Bis, mais Roupa Nova, Boca Livre e A Cor do Som. Essas quatro bandas foram as que seguraram a barra do rock quando a música brasileira foi invadida pela discoteca no final dos 70. E aí eles acham que o rock brasileiro começou na Blitz. A gente viu a Blitz começar lá na Odeon. Éramos da mesma gravadora. O 14 Bis já estava no quinto ou sexto disco quando a Blitz começou. Então, acho uma injustiça. E com O Terço mais ainda, porque foi a melhor banda de rock de 74 e 75, presente em todos os jornais. É uma banda que foi importante. (...) Eu acho que é falta de memória. Na verdade, muitas dessas coisas se não forem faladas como é que as pessoas vão saber? Agora, eu acho absurdo um jornalista que se dispõe a fazer uma antologia e... Eu, como músico, tenho a obrigação de saber quem foi Wagner, Liszt, Stravinsky, Pixinguinha e o que eles fizeram. Acho que tenho a obrigação de saber. Pode ser que eu não goste e não queira ter na minha discoteca, mas tenho a obrigação de saber qual a importância que esses artistas tiveram. Acho absurdo que um jornalista se disponha a fazer uma antologia de rock sem saber que existiu uma banda chamada O Terço, que foi a mais importante durante três ou quatro anos na música brasileira mais Os Mutantes. Nem ao grupo Os Mutantes às vezes é dado o devido valor; esta que foi a banda mais importante do rock brasileiro até hoje. Eu acho. Não tem ninguém que chegue aos pés. Eu vi Os Mutantes tocarem ao vivo. Não tem nenhuma banda brasileira que chegue aos pés do que foi Os Mutantes nos anos 70. Aí vêm certos jornalistas que só lêem aquelas colunas sobre rock inglês e escrevem uma antologia do rock brasileiro a partir dessa ótica. O nome já diz: rock brasileiro. Então, vamos ver quem fez rock aqui no Brasil. Celi Campelo é rock na veia. Quem ouviu na época sabe disso. Jovem Guarda foi super importante e foi rock no começo. O Erasmo Carlos é um grande roqueiro. Então, tem que ter uma certa noção para pôr as coisas nos devidos lugares.[10]

A declaração de Venturini nos mostra não apenas o descontentamento com o tratamento “marginal” que a sua geração de roqueiros continuou a receber por parte da imprensa, mas também, mostra uma clara consciência de que, no Brasil dos anos 70, havia não apenas rock, mas sobretudo, havia já um Rock Brasileiro.


Mas então...

Se a idéia é falarmos de um rock brasileiro, é preciso aceitar desde o início a presença do elemento externo; do global, do outro. Avaliar o rock com algum tipo de purismo ou uma balança por demais “nacionalista” resulta sempre em diagnósticos obtusos e incompletos. Mais interessante é tentar localizar, genealogicamente falando, por onde andou o rock na música brasileira e por onde passou a música brasileira no rock. E tomando esta ótica mais matizada, mais híbrida, como ponto de partida, pudemos começar a enxergar que o rock “transou” muito ― para usar uma gíria comum da época ― com um pouco de tudo por este Brasil afora, em toda aquela já distante década de 1970.
É inegável que havia uma forte necessidade de reprodução de padrões vindos de fora, de comportamentos e de sonoridades, mas tudo isto era também temperado com muitos elementos nacionais, e em se tratando de música, isto foi muitas vezes realizado com extrema competência.
O relativo fracasso comercial do rock brasileiro dos anos 70 é facilmente compreensível, e muito diretamente ligado ao pouco investimento que as nossas gravadoras dispensavam ao gênero na época. Quando mesmo os discos dos grandes astros do rock internacional alcançavam vendagens modestas no país, era realmente difícil que um executivo da indústria fonográfica levasse a sério a hipótese de investir no gênero. No entanto, algumas experiências mercadologicamente muito bem-sucedidas mostravam que talvez houvesse ali um filão a ser explorado. Alguns artistas alcançaram vendagens realmente expressivas, e souberam comunicar-se com parcelas amplas de público, tais como os Secos e Molhados, que venderam quase 1 milhão de cópias, Raul Seixas, que emplacou 600 mil cópias com seu LP “Gita”, e também O Terço, com as 500 mil cópias do seu “Criaturas da Noite”. Talvez, ao contrário do que afirmavam na época, não fosse o Brasil que não estivesse preparado para o rock, mas sim a nossa indústria fonográfica. O que não se entende é que este insucesso comercial sirva de justificativa para o semi-esquecimento da história do rock brasileiro da década de 1970 e a desvalorização de um período inteiro de experiências musicais férteis e variadas.
Podemos entender o caso brasileiro como um exemplo concreto daquilo que Canclini fala a respeito das tensões e conflitos deflagrados pelos processos de hibridação. Uma visão mais ingênua da hibridação pode nos dar a entender que a cultura e as artes são um campo aberto e liberado para todo tipo de experimentações, mas na verdade, todas estas propostas artísticas desenvolvem-se em permanente contato/diálogo/conflito com outros fatores formadores da cultura. O diálogo tenso que se desenvolveu no Brasil dos anos 70, entre os artistas de rock, os fãs, a indústria fonográfica e a imprensa, mostra-nos as extremas dificuldades existentes para se levar adiante, conquistar um espaço e marcar de forma concreta determinadas propostas estéticas dentro de um cenário cultural específico. Para de fato “acontecer” no Brasil, o rock não dependia apenas de seus músicos e potenciais fãs, precisava dialogar com diferentes estruturas, ligadas não apenas a aspectos artísticos ― os sempre presentes debates entre a brasilidade ou não ― mas também outras ligadas a questões comerciais e, claro, também políticas, devido à peculiar situação em que o país se encontrava. Havia também as tensões envolvendo disputas pela definição do que seria verdadeiramente rock, entre segmentos de fãs e da imprensa. A pretensa unidade do rock, que existia até fins dos anos 1960, explodiu na década de 70, e iniciou a trajetória de divisões entre diversos sub-gêneros. No Brasil, ao mesmo tempo em que ainda se apregoava e tentava-se viver segundo os ideais de uma filosofia contracultural, hippie, de união em torno do rock and roll, vivia-se claramente os conflitos gerados pelo alargamento do espectro de definições possíveis para o rock.
Em torno das polêmicas travadas entre a musica mais elaborada ligada ao rock progressivo, e o som mais direto e pesado do hard rock, somavam-se outras derivadas da peculiar situação política em que o país vivia, durante o período mais violento da ditadura militar, e experimentava com certo atraso as novidades e questões enfrentadas pela juventude dos países centrais (devido mesmo às dificuldades de comunicação ainda existentes naquela época). Desta forma pudemos concluir que as identidades roqueiras da época definiam-se não tanto pelo que poderia ser reconhecido como consensual, mas muito mais pelos conflitos, e principalmente pela natureza e pelos tipos de conflitos que eram gerados em seu meio.
Nos interstícios do permitido, nossa juventude viveu, a seu modo, o sonho do rock. Curtiu e cultuou seus signos visuais ― cabelos longos, medalhões, batas, colares e guitarras ― criou sua linguagem ― gírias recorrentes como “transa”, “desbunde”, “grilo” ― e fez história.
Por fim, é interessante notar também, que muitas questões que permearam o universo do rock e da música pop brasileira a partir dos anos 90, tais como, o diálogo com tradições regionais, o ecletismo e a tônica na “mistura”, a rejeição a rótulos musicais mais restritivos, já estavam presente em diversos artistas do cenário dos anos 1970.



[1]
Ritchie, à época, era membro da Scaladácida, a primeira banda da qual fez parte no Brasil, tendo participado depois dos grupos Soma, A Barca do Sol e também do Vímana
[2]
Extraído do site http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=22, visitado em 06 de julho de 2007.
[3]
Conforme Revista POEIRA ZINE, n° 8: p. 10.
[4]
“Jornal da Música”, encartado na edição número 19 da revista “Rock: A História e a Glória”. Possivelmente Abril ou Maio de 1976.

[5] O Jornal de Música vinha encartado na Revista Rock: A História e a Glória. Esta crítica foi publicada na edição número 13 da revista rock. Nenhum dos exemplares da revista que tivemos a oportunidade de manusear apresentava data de sua publicação, portanto, não sabemos ao certo em que mês esta edição chegou às bancas. A data provável desta edição é entre novembro e dezembro de 1975.
[6] Para os mais curiosos e interessados, informamos que esta mesma apresentação da banda Veludo foi lançada, de forma independente, em 2005, no CD “Veludo ao Vivo”.
[7] Jornal da Música, página 7, encartado na edição número 13 da revista Rock. Provavelmente entre novembro e dezembro de 1975.
[8 ] ver Revista Rock: A História e a Glória, número 2, p. 22.
[9] Extraído do site http://www.jovemguarda.com.br/entrevista-dinho-leme.php, visitado em 10 de maio de 2007.
[10] Extraído do site http://www.paginadamusica.com.br/edanteriores/outubro02/flavioventurini3.htm, visitado em 10 de maio de 2007.
Referências

Livros
CALADO, Carlos. A Divina Comédia dos Mutantes. São Paulo: 34, 1995. 362 p.
CALADO, Carlos. Tropicália: A história de uma revolução musical. São Paulo: 34, 1997. 338 p.
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Trad. Heloíza Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Edusp, 2006. 390 p.
CHACON, Paulo. O que é Rock. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 82 p.
DAPIEVE, Arthur. BRock: o rock brasileiro dos anos 80. 3 ed. São Paulo: 34, 2005.
JANOTTI, Jeder. Aumenta que isso aí é Rock and Roll: Mídia, gênero musical e identidade. Rio de Janeiro: E-Papers, 2003.
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. Trad. A. Costa. Rio de Janeiro: Record, 2006. 494 p.
GARCÍA, Luis Britto. El império contracultural. Del rock a la postmodernidad. Caracas: Nueva Sociedad,1996. 390 p.
GOMES, Paulo Emilio Salles. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 112 p.
MONTANARI, Valdir. História da Música: Da idade da pedra à idade do rock .São Paulo: Ática, 2001. 90 p.
MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 468 p.
NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70: Ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano: Editora Senac Rio, 2005.

Tese de Doutorado
NERCOLINI, Marildo José. A construção cultural pelas metáforas: A MPB e o Rock Nacional Argentino repensam as fronteiras globalizadas. Tese de doutorado aprovada pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, LETRAS /UFRJ, 2005. 352 p.

Periódicos
Rock: A História e a Glória. Edições 02, 10, 11, 12, 13, 15, 17, 19 e 20.
Poeira Zine. Edições 03, 04, 05, 07, 08, 13.

Web Sites
All music. http://www.allmusic.com
Arquivo do Rock Brasileiro. http://dynamite.terra.com.br/arquivodorock
Café Music. http://trombeta.cafemusic.com.br
Clique Music. http://cliquemusic.uol.com.br
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. http://www.dicionariompb.com.br
Discoteca Básica. http://dbasica.blogspot.com
Festival de Águas Claras. http://aguasclarasfestival.blogspot.com
Gafieiras, A música do Brasil. http://www.gafieiras.com.br
IMMUB - Instituto Memória Musical Brasileira. http://www.memoriamusical.com.br/
Jovem Guarda. http://www.jovemguarda.com.br
Lulu Santos - Site Oficial. http://www.lulusantos.com.br
Museu da Pessoa Brasil. http://www.museudapessoa.net
Músicas.mus.br. http://www.musicas.mus.br
O Terço. http://www.oterco.com.br
Overmundo. http://www.overmundo.com.br
Página da Música. http://www.paginadamusica.com.br
Pílula Pop. http://www.pilulapop.com.br
Raul Seixas - Official Site. http://www.raulseixas.com.br
Ritchie - Web site oficial. http://www.ritchie.com.br
Rock Press. http://www.rockpress.com.br
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