3.10.07

| AGORA FALANDO SÉRIO:
CHICO BUARQUE

NERCOLINI, Marildo José. Artista-intelectual: a voz possível em uma sociedade que foi calada; uma análise sociológica da obra de Chico Buarque e Caetano Veloso no Brasil dos anos 60. Tese de mestrado. Porto Alegre: UFRGS. 1997. p.82-146.
Excerto: "II - AGORA FALANDO SÉRIO: CHICO BUARQUE"



Chico Buarque sempre manteve uma atitude comportamental distante do escândalo. Nem o apelo visual nem o movimento foram marcas da presença de Chico no palco. Sua insatisfação e rebeldia, se não apareciam na maneira de vestir-se e de apresentar-se, apareciam nas suas composições musicais e nas suas produções teatrais e literárias.
Compor usando a linguagem da fresta, a linguagem do metafórico, do elíptico: Chico foi um mestre nessa forma de expressão. Se no princípio suas composições eram mais líricas, marcadas pelo tom orfêico, com as transformações funestas por que o Brasil foi passando a partir de 64, Davi toma o lugar de Orfeu: o lirismo dá lugar ao protesto, o carnaval dá lugar ao triste cotidiano de uma intelectualidade obrigada a calar-se, de uma população obstruída de pensar a própria realidade em que vivia, pois estava cerceada a livre expressão.
Chico transformou-se em porta-voz de uma intelectualidade calada à força. Seus discos eram exaustivamente ouvidos e analisados. Suas composições eram dissecadas por sociólogos, antropólogos, jornalistas, universitários, sedentos por encontrar nelas as palavras, as idéias que lhes eram interditadas.
A canção popular passou a ser um dos poucos canais de manifestação. Não que ela também não tenha sofrido a repressão, o próprio Chico Buarque é testemunha de como a censura não deixava ninguém se expressar livremente: teve algumas de suas composições proibidas, viu-se obrigado a alterar versos de outras para que fossem liberadas, sem falar de sua peça de teatro Calabar, elogio da traição proibida dias antes de sua estréia, ou Roda-viva, cujos artistas foram espancados no Rio e em Porto Alegre.
Apesar da perseguição, a criatividade buarqueana foi capaz de enganar muitas vezes a censura e ser a voz de quem estava calado à força. Difícil fazer desaparecer ou calar alguém que estava na “boca do povo”, nas rodas de samba, nas conversas de botequins, ou era tema de discussões entre estudantes universitários. Chico teve uma trajetória de luta e confrontamento com a ditadura militar, liderando ou participando de movimentos que buscavam a derrubada de uma famigerada casta imbuída de poderes de vida e morte sobre as pessoas.
Ele foi perseguido, se não fisicamente, mas em sua criação. Se não cortaram seus braços, tentaram amarrá-los para que não tocasse ou escrevesse; se não o encarceraram, tentaram abafar sua voz para que não proferisse a palavra inaudita. Chico consegue trabalhar muito bem com a palavra, lapidando-a, transformando-a em instrumento capaz de driblar a censura e servir como peça de resistência à ditadura.
A - Formação cultural e musical

Filho de Sérgio Buarque de Hollanda, conhecido historiador brasileiro, Chico Buarque desde cedo conviveu em um ambiente de sólida formação intelectual.[1] Sua casa era local de encontros entre conceituados pensadores brasileiros, ligados ao mundo acadêmico, à política e às artes. Provido de um conhecimento profundo sobre o Brasil, Sérgio influenciou seu filho, que, mesmo não seguindo os passos acadêmicos do pai, demonstra em sua produção uma clara consciência sobre o país em que vive: sua realidade, sua gente.
Sérgio Buarque, de acordo com Antônio Cândido[2], é responsável, enquanto historiador, por uma interpretação desmistificadora do passado brasileiro. Para ele a função da História é nos libertar de vícios do passado, entre os quais o patriarcalismo presente no espaço público e a visão de cultura como ornamento e não como educação e ação.[3] Chico Buarque coloca em prática em sua vida e obra essa concepção radicalmente progressista do pai, fazendo de sua criação cultural, no caso ligada à canção popular, muito mais do que um ornamento, mas capaz de revelar as raízes profundas do “homem cordial”[4], descrevendo e analisando o quotidiano do brasileiro comum: seus sofrimentos e alegrias, suas lutas e mazelas.
Ao descrever o homem comum, Chico Buarque põe em cena o Brasil com seus contrastes, seus problemas, suas mazelas. Consciente ou inconscientemente - na verdade isso pouco importa, pois de fato o faz -, Chico entra pelas veredas de um conhecimento que crê poder captar uma realidade não somente através do estudo das grandes problemáticas, das grandes figuras históricas, um conhecimento que vê no homem simples e em suas relações a possibilidade de encontrar o fundamental. Questões antes consideradas menores são resgatadas enquanto passíveis de estudo e análise. Junto à política, à economia, às relações internacionais, os aspectos culturais, em suas diversas ramificações, passam a ocupar um lugar importante para o entendimento de uma realidade.
Muita coisa se alterou no mundo das pesquisas sociais à medida que se descobriu que fatos aparentemente corriqueiros, que pessoas aparentemente sem atrativos, tinham exatamente nesses pretensos "defeitos" a sua maior qualidade. Quando se queria estudar uma época, seus costumes, seu pensamento, recorria-se tão somente aos seus grandes pensadores, escritores de renome, políticos tarimbados. Eles representavam condignamente o seu tempo.
Começou-se a ouvir vozes discordantes. Pessoas interessadas em resgatar o vivido de uma sociedade, de uma época, através de seus representantes mais simples, pois como afirma Norman Denzin:
As pessoas comuns universalizam, através de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem. Elas são exemplos singulares da universalidade da história humana (. . .). É, portanto, um desafio (. . .) trazer de volta a essa disciplina as pessoas comuns (e suas vidas), o cimento e a infra-estrutura das sociedades de hoje, mas como pessoas vivas, que respiram e sentem. [5]

Chico resgata em suas composições esse homem comum, e, por meio dele, o Brasil de um período histórico - no caso, os anos 60 -, com suas peculiaridades. Através de personagens como o Juca, o Zé qualquer, a Maria, a Carolina, a moça da janela, o Pedro, o Nicanor; do homem simples, Chico apresenta um todo mais complexo: a realidade social do Brasil. Distante das teorias verborrágicas - comuns no mundo acadêmico -, Chico prefere dizer o mundo pelo simples. Se a intelectualidade sociológica desse período estava estritamente ligada às chamadas “grandes causas”, atendo-se a uma análise macroestrutural da sociedade, Chico apresenta o Brasil aos brasileiros e aos próprios intelectuais focando o homem que mora no barraco, vai ao Maracanã no domingo, bebe sua cerveja, chora por seu time, sofre na fábrica, espera, luta.
Quanto aos estudos, de acordo com o pai, ele “dedicava-se a eles principalmente às vésperas de exame. Estudava duas horas seguidas, depois cansava e ia se divertir”.[6] Chico teve sua formação acadêmica inicial ligada a colégios católicos.[7] Atividades assistenciais desenvolvidas nesses colégios com presos, moradores de rua, levaram-no, desde cedo, a tomar consciência dos problemas sociais, desigualdades e injustiças que o rodeavam.[8] A formação cristã adquirida nessas instituições está presente em suas primeiras composições, cantadas em shows colegiais. Por exemplo, Anjinho de papel, feita aos 16 anos, mostra um universo vocabular fortemente marcado pela temática religiosa: catecismo, anjos, céu, pureza, bem, véu, arranjo:
Meu livro de catecismo
lembro-me hoje ainda
mostrar anjos no céu
e eu puro sentimentalismo
guardei uma anjinha linda
desenhada em um papel
depois, amei você também
você parece um anjo
pensei que fosse um bem,
porém, já vem por trás do véu
envolver esse olhar de arranjo
o meu anjinho de papel.[9]

Outra composição dessa primeira fase que pode ser citada, é Marcha para um dia de sol:
Eu quero ver um dia
nascer sorrindo
e toda gente, sorrir com o dia
a alegria, o sol e o mar
criança brincando
mulher a cantar
quero ver um dia numa só canção
o pobre e o rico andando - irmão
que nada falte
que nada sobre
o pão do rico e o pão do pobre
eu quero ver um dia
todos trabalhar
e o fim do dia
ter onde voltar
e ter amor
eu quero ver a paz
tristeza nunca mais
eu quero tanto um dia
o pobre ver seu filho
o rico com coração.”

Essa música, renegada pelo próprio autor, foi apelidada de Marcha João XXIII, pois sua temática lembrava as encíclicas papais feitas, nessa época, nas quais apontava-se a necessidade da união entre ricos e pobres para construir um mundo de paz e amor.[10] De acordo com Walnice Galvão, esse seria um exemplo de composição centrada na temática “o dia que virá”, que, a pretexto de possuir uma mensagem crítica, na verdade acaba por absolver o ouvinte de responsabilidade no processo histórico. Depois dessa composição, o tema “o dia” e a “espera” reaparecem, mas de forma cética ou enquanto reflexão sobre o ato de esperar.[11]
O engajamento político-social de Chico se fortaleceu com sua entrada na universidade. Cursando Arquitetura, na FAU, entrou em contato com o ambiente universitário brasileiro que, nessa época, era muito movimentado política e culturalmente. Nesse meio, articulavam-se os Centros Populares de Cultura, em que artistas (ligados ao teatro, à música, ao cinema, à literatura) intentavam criar uma arte conscientizadora, visando atingir às classes populares.
Data de 1962 o anteprojeto Manifesto do CPC que postula o engajamento do artista, afirmando que “fora da arte política não há arte popular.”[12]
Heloísa Buarque de Hollanda, analisando o CPC, afirma que:
Na ‘arte popular revolucionária’, o artista e o intelectual devem assumir um compromisso de ‘clareza com seu público’, o que não significa uma ‘negligência formal’. Ao contrário, cabe ao artista realizar ‘o laborioso esforço de adestrar seus poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os conteúdos originais. (. . .) Se queria um adestramento à sintaxe das massas, mas a linguagem do intelectual travestido em povo trai-se pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas de expressão provinciais ou arcaicas.[13]

O envolvimento político dos estudantes universitários se dava nas mais diversas instâncias, começando pela participação na política estudantil organizada e em outras frentes intra e extra acadêmicas. Entidades como a UNE, organizações estudantis em nível estadual e municipal, centros acadêmicos, longe do marasmo hoje reinante, tinham atuação forte, buscando influenciar nos caminhos do país.
Chico após três anos de Arquitetura[14], desistiu do curso, pois o sucesso conseguido com A banda, aliado também a sua pouca paixão pelo curso e funestas mudanças impingidas pelo regime militar que se instalou, levaram-no a dedicar-se exclusivamente a sua carreira de cantor-compositor.
Quanto a sua formação musical, ele a iniciou muito cedo. Sua família sempre esteve ligada à música. Miúcha, sua irmã, tocava violão, cantava e compunha. Seu pai mantinha contatos com Ari Barroso e Mário Reis, seus colegas de turma no Direito, além de Pixinguinha, Donga, completados por uma admiração pela música produzida por Noel Rosa. Ouvia-se e cantava-se muita música popular brasileira na casa dos Buarque de Hollanda. A família costumava manter freqüentes contatos também com outros significativos representantes da música nacional: Vinícius de Moraes, João Gilberto e Tom Jobim. Na formação musical de Chico temos, portanto, um cabedal de influência suficientemente ilustrativo dos grandes mestres da música popular nacional.
Críticos musicais sempre foram pródigos em afirmar a forte influência de Noel Rosa na obra buarquena.[15] Chico não nega isso, pois, como Noel, Chico se dedica a temática urbana e quotidiana em suas composições, porém não se considera um segundo Noel, como alguns chegaram a chamá-lo. Em entrevista concedida em 68 a Flávio Moreira da Costa, ele assim se expressa:
Mas o engraçado é que sempre houve um ‘novo Noel Rosa’, o último até agora foi o Billy Branco. (. . .) Sempre tem um novo Noel Rosa. Acho que é porque ele morreu cedo e o pessoal ficou com saudades. Não posso dizer que não sofra a influência dele, claro que sofro, mas tanto dele como de Dorival Caimmy, Ataulfo Alves, Ismael Silva e a Bossa Nova de João Gilberto, Vinícius e Tom. Tudo isso faz parte da minha formação.[16]

Chico Buarque se diz filho musical de João Gilberto. Foi ouvindo Chega de saudade e outras composições ligadas à Bossa Nova que ele passou a interessar-se pela música. Inicialmente tentou imitar o mestre, mas, aos poucos, criou o seu próprio estilo. Destaca, em sua formação musical, a influência da música de Tom Jobim e da letra de Vinícius de Moraes.[17]

B - Análise das composições
O que mais importa na vida de um artista é a sua obra. No caso deste estudo sobre Chico analisaremos as composições feitas entre 64 e 70. Muitas análises literárias e musicais já foram feitas da obra buarqueana. Este trabalho quer trazer o ponto de vista sociológico. Não se pretende uma leitura definitiva, coisa impossível em se tratando de uma obra de tal magnitude, pois Chico suplanta qualquer tentativa de classificação estrita:
Olha eu nunca pertenci a grupo nenhum. Nasci muito tarde para pertencer à Bossa Nova. Aprendi violão de ouvido, e quando cresci, meio isolado, meus discos não pertenciam a grupo nenhum. Nunca me preocupei muito com essas tomadas de posição. Particularmente, gosto, como o Vinícius disse, do som brasileiro.[18]

As composições de Chico são aqui estudadas a partir de cinco grandes temáticas: valores defendidos, poder da música, público e privado, crítica social e postura política - manifesto. Essas temáticas estão diretamente ligadas à postura do intelectual, na visão defendida nesse trabalho e já mostrado na introdução do mesmo.
As composições buarqueanas produzidas nesse período apresentam o Brasil. Poetizando o quotidiano de personagens comuns, resgata, de forma crítica, o dia-a-dia de um país subjugado pela ditadura, a desesperança que toma conta de sua intelectualidade e o sofrimento trazido pela exploração do homem pelo homem. Ou, como afirma Affonso Romano de Sant’Anna:
. . . sua obra se desenvolve sistematicamente como uma construção, onde todas as imagens, mesmo as mais banais, contribuem para a reafirmação da música como atividade destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar as verdades que os homens querem calar. Em Chico a música é possibilidade de comunhão, a lembrança do paraíso perdido, música como abertura para a vida.[19]


1. Valores defendidos.
Em 1964, convidado a fazer um samba para ser cantado por todos os cantores em um show em que se apresentariam as mais diversas tendências da MPB, Chico cria Tem mais samba. Nela já aparece nítido o seu desejo de encontro, de unidade dentro do campo artístico brasileiro. Unidade não no sentido de igualdade de propostas, mas de aceitação das diferenças para evitar a dispersão.

TEM MAIS SAMBA (1964)
Tem mais samba no encontro que na espera
Tem mais samba a maldade que a ferida
Tem mais samba no porto que na vela
Tem mais samba o perdão que a despedida
Tem mais samba nas mãos do que nos olhos
Tem mais samba no chão do que na lua
Tem mais samba no homem que trabalha
Tem mais samba no som que vem da rua
Tem mais samba no peito de quem chora
Tem mais samba no pranto de quem vê
Que o bom samba não tem lugar nem hora
O coração de fora
Samba sem querer

Vem que passa
Teu sofrer
Se todo mundo sambasse
Seria tão fácil viver

Chico convida as pessoas a virem para o encontro. Saírem de seus mundos fechados e se unirem, não ficarem esperando, afinal tem mais samba o encontro que a espera. Abrindo-se para o mundo, saindo às ruas, ocupando o espaço público, o sofrimento passa, a vida se torna mais fácil para todos. Tudo que possibilita o encontro, a união das pessoas tem mais valor. Chico chama a atenção para a necessidade de se estar com os pés no chão, ligado à realidade a sua volta.
Para uma esquerda e sua intelectualidade que esperavam a revolução e tinham muito claro teoricamente como fazê-la, Chico lembra a necessidade de se permanecer com os pés no chão - tem mais samba no chão do que na lua - e dar-se conta do trabalhador e de sua situação concreta, e não da teoricamente construída.
Nessa composição aparece o tema da rua, do espaço público: tem mais samba no som que vem da rua. O compositor convida para o samba, para a vida. Sair para a rua, não ficar à janela vendo o mundo passar, configura-se num convite ao artista, ao intelectual de se fazer presente no espaço público. Nem todos aceitam, querem ou podem sambar. Há divisões, desigualdades que impedem que a vida seja tranqüila e feliz.
Em Meu refrão, Chico apresenta em canção aquilo que havia comentado em entrevistas: pós-golpe militar lhe sobrevém um sentimento forte de desilusão com a política, de descrença com os caminhos propostos pela esquerda. A letra tem um tom agressivo, demarcando parâmetros claros para ele próprio e para os outros, que bem poderiam ser os militares de direita quanto os militantes de esquerda.
MEU REFRÃO (1965)
Quem canta comigo
Canta o meu refrão
Meu melhor amigo
É meu violão

Já chorei sentido
De desilusão
Hoje estou crescido
Já não choro não
Já brinquei de bola
Já soltei balão
Mas tive que fugir da escola
Pra aprender essa lição

Quem canta comigo
Canta o meu refrão
Meu melhor amigo
É meu violão

O refrão que eu faço
É pra você saber
Que eu não vou dar braço
Pra ninguém torcer
Deixa de feitiço
Que eu não mudo não
Pois eu sou sem compromisso
Sem relógio e sem patrão

Quem canta comigo
Canta o meu refrão
Meu melhor amigo
É meu violão

Eu nasci sem sorte
Moro num barraco
Mas meu santo é forte
E o samba é meu fraco
No meu samba eu digo
O que é de coração
Mas quem canta comigo
Canta o meu refrão

Quem canta comigo
Canta o meu refrão
Meu melhor amigo
É meu violão



Não se sente comprometido com nenhuma proposta e com ninguém. O seu compromisso é com sua música, com seu violão. Esse é o seu trabalho, e dele não vai desistir. Acima de tudo, afirma a liberdade de expressão e que não aceita ser manipulado e nem tampouco ele próprio manipular a sua criação tendo em vista este ou aquele pressuposto. Não aceita imposições, pois não tem um comandante, um patrão. Sente-se só e desiludido. Perdeu a confiança em quem estava ao seu lado. O seu único compromisso na criação é consigo mesmo, o que é de coração, aquilo em que de fato acredita.
Certamente a liberdade foi o valor mais fortemente defendido por Chico nesse período. A luta pela liberdade de criação e de expressão aparecem constantemente em suas entrevistas e em sua produção musical e teatral dessa época.
No que se refere à liberdade de expressão, contrapõe-se ao sectarismo então presente, de querer tudo enquadrar, de exigir do músico popular uma canção explicitamente política e simples, para não dizer simplória.
Acho que tudo é válido - prossegue Chico. Detesto esse negócio de sectarismo. Tudo tem que ser bom. O samba não precisa ser necessariamente social, na base da reivindicação, do protesto. Não gosto que nada me constranja.[20]

Chico ligou-se, de certo modo, à linha nacional-popular, mas não seguiu à risca suas posturas, ou pelo menos as de uma boa parcela de seus defensores, que a encararam de uma forma muito reducionista. A pretensa preservação do genuíno contido na “verdadeira” música nacional levou alguns, como Tinhorão, a rechaçar propostas alternativas, mas também populares, do samba-canção, como, inicialmente, a Bossa Nova e, mais tarde, a Tropicália. Os seguidores desses dois movimentos musicais foram acusados de se venderem ao imperialismo pois, pior do que sofrerem influência estrangeira, foi a terem buscado.
Chico, mesmo não sendo um fiel seguidor da Bossa Nova e tendo uma proposta difenciada da Tropicália, tem uma visão que aceita e respeita o diferente. A Música Popular Brasileira, para ele, constitui-se em espaço de amplas possibilidades de criação, não aceitando caminhos únicos e reducionistas.
Os caminhos [da MPB] são inúmeros, eu sou contra restrições, ‘você tem de seguir esse caminho, samba’, ou ‘você tem de fazer marcha-rancho’. Há mil caminhos. (. . .) E a Bossa Nova tem influência do jazz, todo mundo sabe disso, como a modinha brasileira é de origem portuguesa, e o samba, de origem africana. Mas eu acho que é muito cedo pra ficar precipitando, tem de ser isso, tem de ser aquilo.[21]

Não esconde seu descontentamento com a infiltração massiva da música estrangeira, especialmente norte-americana, no país. Não negando sua formação de esquerda, sente-se incomodado, mas, mesmo nesse caso, se recusa a aceitar a censura, pois “não podemos impedir que as músicas [estrangeiras] entrem. Elas estão em filmes, TV... Os estrangeiros têm poder econômico, o que nos falta.” Como solução: “Temos de fazer música, música e música. Não adianta tentar eliminar as outras”.[22]
Chico trava uma luta notável em defesa da liberdade de expressão. Seu ataque explícito à censura se dá a partir de 68, com os acontecimentos envolvendo a peça Roda-viva e seus atores (ver análise posterior) e a proibição constante de suas músicas ou de parte delas, como decorrência do AI-5 e o conseqüente recrudescimento da ditadura.
Em abril de 68, em depoimento a uma CPI sobre os Direitos Autorais, em Brasília, deixa explícita sua opinião. Indagado pelo relator sobre a censura, responde:
Sou contra a censura. (. . .)Não sei como possa haver quem defenda um maior poder para a censura. Na música e em todas as artes, estão - parece - querendo restringir a liberdade de criação. A luta agora é exatamente contra a censura. Queremos abrir uma perspectiva...[23]

O compositor chega a se mostrar preocupado com o perigo de o criador introjetar a censura, exercendo sobre sua produção um papel policialesco, castrando sua imaginação e seu poder criativo:
A censura torna difícil o processo de criação, seja para um compositor, escritor ou artista plástico. Inconscientemente, o sujeito cria uma autocensura que castra sua imaginação e poder criativo, obrigando-o a cortar sua obra antes que as autoridades o façam. No meu caso, pessoalmente, estavam chegando ao ponto de censurar duas em cada três músicas que fazia. Ficava até com medo de mandar o material para eles.[24]

Ele assume um papel proeminente na luta a favor da liberdade de expressão.
A censura pode impedir de falar, mas não pode obrigar ninguém a deixar de pensar. (. . .) [Ela] é um grande e terrível atraso para um povo. E quando não há alternativa, os povos deveriam usar esta experiência para fortalecerem-se, enriquecerem-se por dentro. Até conseguirem alargar com sua respiração os limites do espartilho das proibições.[25]


Em Chico, a criatividade aflora, mesmo com a censura ou apesar dela. Consegue expressar-se usando o que Vasconcellos vai chamar de “linguagem da fresta”[26]. Com competência e criatividade, dribla a censura e cria o seu estilo, consegue, de fato, “alargar os espartilhos das proibições”. Zuenir, analisando a obra buarqueana, assim se expressa:
Chico foi quem melhor soube aproveitar as dificuldade e desafios de uma época para instaurar uma estética, elaborar uma estilística e forjar uma estratégia própria para com ela construir uma obra que, pela qualidade e pela quantidade, dificilmente encontra paralelo mesmo nas outras artes do pais.[27]

Em Sonho de carnaval o tema do carnaval - recorrente em muitas das composições de Chico - toma forma, não somente no sentido da festa popular, mas sim como época de inversão: tempo em que a festa e a alegria se instalam, recebendo o mesmo tratamento do rito e do mito.
É um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade. O não carnaval é o silêncio e a repressão (. . .) Ao desenvolver a temática do carnaval, sua música funde o problema do indivíduo ao da sociedade.[28]

O mais usual na obra de Chico é a canção iniciar exaltando essa festa e, no final, com a chegada da quarta-feira de cinzas, vem a triste realidade e tudo volta ao normal, porém, nesta composição, dá-se o contrário:

SONHO DE UM CARNAVAL (1965)
Carnaval, desengano
Deixei a dor em casa me esperando
E brinquei e gritei e fui vestido do rei
Quarta-feira sempre desce o pano

Carnaval, desengano
Essa morena me deixou sonhando
Mão na mão, pé no chão
E hoje nem lembra não
Quarta-feira sempre desce o pano

Era uma canção, um só cordão
E uma vontade
De tomar a mão
De cada irmão pela cidade

No carnaval, esperança
Que gente longe viva na lembrança
Que gente triste possa entrar na dança
Que gente grande saiba ser criança

A segunda parte da música vem marcada por valores utópicos. De um carnaval desengano, temos agora a esperança, mas desde que se forme um só cordão, que as pessoas se dêem as mãos. A igualdade é ressaltada à medida que chama a todos de irmãos. Se essa unidade de irmãos existir, sobrevirão a esperança e as transformações: os esquecidos serão lembrados, os tristes entrarão na dança, o adulto terá a pureza da criança. O processo de carnavalização instaurado.


2. Poder da música.
Em Olê, olá vem à tona o poder da música. Ela é capaz de acabar com a tristeza, o sofrimento. O samba, ligado à alegria, à noite, é uma criança, um menino, em comparação com a dor, velha, que pode morrer. Para acabar com a tristeza, é preciso entrar na roda, sair do seu mundo particular e vir sambar, mas sem esquecer de tomar alguns cuidados.
OLÊ, OLÁ (1965)
Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ouvir
E se ela for de samba
Há de querer ficar
Seu padre, toca o sino
Que é pra todo mundo saber
Que a noite é criança
Que o samba é menino
Que a dor é tão velha
Que pode morrer
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar

Não chore ainda não
Que eu tenho uma razão
Pra você não chorar
Amiga me perdoa
Se eu insisto a toa
Mas a vida é boa
Para quem cantar

Meu pinho, toca forte
Que é pra todo mundo acordar
Não fale da vida
Nem fale da morte
Tem dó da menina
Não deixa chorar
Olê lê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar
Não chore ainda não
Que eu tenha a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir
Luar, espere um pouco
Que é pro meu samba poder chegar
Eu sei que o violão
Está fraco, está rouco
Mas a minha voz
Não cansou de chamar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Não há mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
Quem passa nem liga
Já vai trabalhar
E você, minha amiga
Já pode chorar.

O poder da música é tão grande que parece parar o tempo, porque também este quer ouvir o samba. A música seria capaz de parar o tempo e instaurar o novo? Chico descrê nisso, pois ao final, tudo se configura num grande desengano. O cantor e sua música tão somente não conseguem esse intento. É preciso mais.
Chico parece afirmar que não se cansa de cantar, de chamar, de buscar tirar as pessoas de seu sofrimento e sair à rua, ocupando o seu espaço. Mas o problema é que ninguém mais quer sambar, não há mais quem cante, acabaram-se as esperanças. As pessoas não estão interessadas, parecem desiludidas. Seguem a sua rotina, quem passa nem liga, já vai trabalhar, nem ouvem mais o trovador.
Esta temática retorna em Um chorinho.
UM CHORINHO (1967)
Ai, o meu amor, a sua dor, a nossa vida
Já não cabem na batida
Do meu pobre cavaquinho
Quem me dera
Pelo menos um momento
Juntar todo sofrimento
Pra botar nesse chorinho
Ai, quem me dera ter um choro de alto porte
Pra cantar com a voz bem forte
E anunciar a luz do dia
Mas quem sou eu
Pra cantar alto assim na praça
Se vem dia, dia passa
E a praça fica mais vazia

Vem, morena,
Não me despreza mais, não
Meu choro é coisa pequena
Mas roubado a duras penas
Do coração
Meu chorinho
Não é uma solução
Enquanto eu cantar sozinho
Quem cruzar o meu caminho, não pára não

Mas não faz mal
E quem quiser que me compreenda
Até que alguma luz acenda, este meu canto continua
Junto meu canto a cada pranto, a cada choro
Até que alguém me faça coro pra cantar na rua

Chico questiona o seu poder enquanto compositor-cantor. Ele, com suas composições, não consegue abarcar a realidade com tanta dor e sofrimento, afinal a sua dor, a nossa vida já não cabem na batida do meu cavaquinho. Através de seu trabalho, gostaria de ter o poder de anunciar a luz do dia, o “novo dia”, “a revolução”, mas isso vai além de suas forças, “quem sou eu” para fazer isso? Dá-se conta de que tem um papel importante: chamar as pessoas à realidade social, conclamá-las a voltar às ruas. Percebe, porém, que esse espaço público está cada vez mais esvaziado, pois se vem dia, dia passa, e a praça fica mais vazia.
Ele, no entanto, não desiste, mesmo com sua voz fraca, continua na rua gritando/cantando para que as pessoas saiam de suas redomas e retomem o espaço que é delas e que lhes foi usurpado e interditado. Sabe que o seu canto não é a solução milagrosa, especialmente enquanto outros a ele não se juntarem. Consciente de seus pontos fracos, não se penaliza com isso, e nem tampouco admite ser desprezado. Suas canções são a contribuição que ele pode dar, roubadas a duras penas do coração.
O poder de sua canção está na tentativa de arregimentar as pessoas a ocuparem o espaço público, interditado pela ditadura. Esse é o seu papel, o papel do intelectual. Enquanto o país permanecer na escuridão, nas “trevas” ditatoriais, ele continuará com seu canto. Quer que a ele outros se juntem e voltem para a praça, para a rua.


3. Público e privado.
Em A banda, novamente se reafirma o poder da música. Ela traz a alegria e inaugura um tempo diferente, abre uma brecha no tempo linear. As pessoas param com suas tarefas rotineiras quando a banda chega na cidade e instaura a alegria, o gozo. Concretiza-se, por uns instante que seja, uma nova realidade, a esperança do novo, do melhor, do sempre outro.

A BANDA (1966)
Estava à toa na vida
E meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O homem velho que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contavas as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou

E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor

Todavia, aqui também o tempo é implacável. A banda passa e deixa atrás de si o mesmo. As coisas retornam aos seus lugares tradicionais. O terrível cotidiano se reinstaura. Cada qual volta para o seu canto, para o seu mundo privado. Volta o desencanto.
A canção popular tem o poder de chamar a atenção e levar as pessoas para a rua, deixando seus afazeres privados para, na praça, constituírem-se em cidadãos. Se a música, porém, numa linha utópica, tem, inicialmente, o poder de aglutinar as pessoas, isso não é suficiente. As pessoas escutam, observam e permanecem numa atitude passiva. Não acompanham a banda, nem permanecem ocupando o espaço público, pois todos voltam à mesma situação de antes. Talvez porque tenham sido coibidos a isso fazer.
Chico diferencia-se de uma linha presente em cantores-compositores de esquerda do período, que defendiam que a música popular deveria ter o papel de denunciar a opressão, a pobreza, com um projeto informativo e participante. Porém, ao não apresentar uma proposta para a realidade que critica, esse tipo de música acaba criando novos mitos e propiciando a evasão. O público universitário, e portanto privilegiado, indigna-se com a situação imposta pelo regime militar e pelo capitalismo e se alivia diante da música que contesta essa realidade, mas isso não o compromete com a ação. Somente ouve e se satisfaz pois sente-se contestando a realidade e fazendo parte de um grupo rebelde. De acordo com Walnice Galvão, isso resulta numa atitude escapista, consoladora para pessoas intelectualmente sofisticadas.
Chico não acredita no poder da canção como capaz de trazer o “novo dia”, a “revolução”. Não que menospreze o seu papel; ao contrário, é o que pode, é o que sabe fazer. Sabe que com isso dá sua contribuição. Mas é preciso mais.
Carolina, certamente uma das canções que mais polêmica causou daquelas produzidas por Chico, foi objeto de várias análises, porém, em nenhuma delas se fez referência ao aspecto aqui ressaltado: a dicotomia espaço privado X espaço público.
CAROLINA (1967)
Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu

Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu

Há uma tentativa de o sambista-cantor trazer Carolina para o espaço público, tirando-a de sua redoma privada onde, trancafiada, chora a dor de todo esse mundo. Numa primeira estrofe, ele, cantor, tenta mostrar o mundo lá fora, a rosa, o samba, a estrela, a esperança. Convida-a para dançar, aproveitar, sair para a rua, unir-se a todo mundo. Sentir pena, de nada resolve. Mas Carolina se recusa, e a rosa que havia nascido, morreu, a festa acaba, a estrela que caía, portanto dando-lhe a oportunidade de fazer os seus pedidos, desaparece, em seu lugar surge a figura de um barco partindo. Não se tem mais nada a fazer.
Carolina poderia ser vista como a imagem de uma intelectualidade desanimada devido ao fracasso de seus ideais revolucionários decorrente do golpe de Estado. Impedida de falar, olha pela janela o sofrimento do seu povo, mas não consegue mais ocupar o espaço público. É impedida e em parte sente-se amedrontada para enfrentar uma ditadura tão feroz.[29]
Chico - também Caetano, como veremos mais tarde - recusa-se a trancafiar-se em seu mundo privado. Ele é um homem da rua. É alguém que quer ocupar o espaço público. A temática de sua produção ilustra bem isso. Mesmo quando fala da história de Juca, Zé qualquer, Carolina ou Pedro, personagens aparentemente individualizados, o faz numa perspectiva universalizante, relacionada com o espaço social, o país em que vive. Aqui se vê claro um dos traços marcantes dos intelectuais: a preocupação pelo espaço público.
O seu manifesto se dirige a um interlocutor privilegiado: o governo militar, fautor do regime ditatorial que se instaurou no país a partir de 64. Elencado como o inimigo número um, pois tenta usurpar o espaço público do artista, do intelectual, do político, das parcelas organizadas da população. Tanto em A banda quanto em Carolina, a música, a canção, o samba estão lá fora, na rua, conclamando as pessoas a saírem de seu mundo particular. Mas o convite não é aceito nem por Carolina nem pelas pessoas que preferem ficar observando a banda passar. Cabe, porém, ao artista, consciente de seu papel, assumir uma postura crítica face aos problemas sociais e políticos do país e auxiliar as pessoas a refletirem sobre essa realidade, para entendê-la e buscar mudá-la.
Um outro enfoque do público e do privado em Chico pode ser percebido quando se analisa Sabiá. Chico que, em 1967, havia sido questionado por sua postura agressiva em Roda-viva - a peça, em 1968 sofre duras críticas por ser excessivamente lírico e não colocar em suas canções a sofrida situação que vivia o país. Algumas de suas composições desse ano - Benvinda, Bom tempo e, especialmente, Sabiá - foram consideradas reacionárias, pois elas “não refletiriam, segundo as críticas da época, a dramaticidade da situação política”.[30]
SABIÁ (1968 - Tom Jobim e Chico)
Vou voltar
Sei que ainda
Vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tanto planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

No III Festival Internacional da Canção de 68, a polêmica se instaurou. Chico ou Vandré? Caminhando, de Geraldo Vandré, respondia perfeitamente aos anseios das esquerdas de então. A simplicidade musical, aliada a uma letra explicitamente política e arregimentadora - Vem, vamos embora, que esperar não é saber - ganhou o público do festival, formado em sua maioria por universitários de tendências à esquerda. A vitória de Sabiá desencadeia uma onda de protesto, vaias e acusações que atingem diretamente a Chico Buarque. A intelectualidade, como afirma Heloísa Buarque de Hollanda, passa então a se questionar,
. . . sobre o sentido e as formas do engajamento político. A polêmica Vandré X Chico talvez seja o exemplo mais contundente disso. A acusação de ‘alienação’ para Chico abriu bastante nossas cabeças que já estavam propensas em acreditar que o pessoal é o político.[31]

O pretenso lirismo alienado de Sabiá, na verdade, era somente aparente pois, assim como em Carolina, A banda e tantas outras de suas composições, o uso do particular, como no caso da moça que se recusava ir para a rua, ou das transformações passageiras causadas pelos músicos e seus instrumentos durante sua passagem pelas ruas de uma cidade, servem de pano de fundo para uma crítica radical às proibições de ocupação do espaço público. Os críticos viram em Sabiá o tom nostálgico, a leveza, o lirismo; mas não conseguiram perceber, nas entrelinhas, a fina ironia presente nessa paródia da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, a descrever um país, antes pujante e belo, que agora estava desfigurado, anômalo e dissonante.
Esta canção, construída na primeira pessoa, mostra um exilado a recordar sua terra e a revelar seus sentimentos. Esse exílio pode ser analisado em dois sentidos. Primeiro, o interior, isto é, com a censura, o poeta se vê tolhido em sua liberdade de criação, sentindo-se exilado em sua própria terra. Segundo, o exílio propriamente dito a que vários brasileiros (artistas, políticos, educadores) foram submetidos durante o regime militar.[32] Chico antecipa o que aconteceria com ele mesmo e com outros artistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, obrigados a viverem no exterior, por não mais suportarem a censura e as perseguições.
Longe de se conformar e de se acostumar a tal situação, o poeta afirma a sua firme convicção de voltar à sua terra, pois a ela pertence e a ela continuará a pertencer. Se a realidade do seu país está mudada e um tanto tenebrosa, visto que não há mais palmeiras, nem flores, e poucos são os amores, mesmo assim é a sua terra. Quem sabe a sua volta possa auxiliar a espantar as noites de uma ditadura envolta em trevas e a implantar o novo, anunciar o dia?


4. Crítica social.
Em Juca Chico assume uma postura crítica diante da autoridade. Através do relato da desgraça acontecida com Juca, sua prisão pelo delegado por estar fazendo uma serenata, Chico resgata alguns temas que vão ser recorrentes em sua obra. Um deles é o samba enquanto sinônimo de vida, amor, partilha, encontro. O sambar é ligado à alegria, à noite, ao luar de prata e à serenata. Juca vê tudo isso ser interditado pelo delegado, a autoridade. Preso, vê a noite enluarada virar dia, e, com chuva fria, o sol não brilha. A autoridade vem marcar a volta à triste realidade. Através de Juca, Chico passa a questionar a autoridade ditatorial que quer interferir em assuntos que não são de sua competência.
JUCA (1965)
Juca foi autuado em flagrante
Como meliante
Pois sambava bem diante
Da janela de Maria
Bem no meio da alegria
A noite virou dia
O seu luar de prata
Virou chuva fria
A sua serenata
Não acordou Maria

Juca ficou desapontado
Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa
O delegado é bamba
Na delegacia
Mas nunca fez samba
Nunca viu Maria


Com sua ação truculenta, o delegado cala o violão, não permitindo que a canção desperte Maria. Duas interpretações, ao menos, são possíveis. Primeira, a canção como possibilidade de “despertar” as pessoas que dormem, portanto o compositor aposta no poder da música. Segunda, Juca está no espaço público - a rua - tentando despertar a quem está recolhido em seu reduto privado. O delegado, adonando-se de plenos poderes, impede a ação-manifestação de Juca pois considera-se como o responsável pela preservação da ordem no espaço público, afastando quem ele acha perturbador da mesma. Metaforicamente, está-se falando da ditadura militar que passou a adonar-se do espaço público, restringindo o seu acesso a quem não lhe era contrário.
Em Tamandaré, percebem-se semelhanças com Juca. Tanto lá quanto aqui, a crítica à autoridade se estabelece.[33] Lá Juca, aqui um Zé qualquer passam a questionar símbolos de autoridade, da força (delegado e Almirante/marquês).
TAMANDARÉ (1965)
Zé qualquer tava sem samba, sem dinheiro
Sem Maria sequer
Sem qualquer paradeiro
Quando encontrou um samba
Inútil e derradeiro
Numa inútil e derradeira
Velha nota de um cruzeiro

“Seu Marquês”, “seu” Almirante
Do semblante meio contrariado
Que fazes parado
No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado
“Seu Marquês”, “seu” Almirante
Sei que antigamente era bem diferente
Desculpe a liberdade
E o samba sem maldade
Deste Zé qualquer
Perdão Marquês de Tamandaré
Perdão Marquês de Tamandaré

Pois é, Tamandaré
A maré não tá boa
Vai virar a canoa
E este mar não dá pé, Tamandaré
Cadê as batalhas
Cadê as medalhas
Cadê a nobreza
Cadê a marquesa, cadê
Não diga que o vento levou
Teu amor até

Pois é, Tamandaré
A maré não tá boa
Vai virar a canoa
E este mar não dá pé, Tamandaré
Meu marquês de papel
Cadê teu troféu
Cadê teu valor
Meu caro almirante
O tempo inconstante roubou

Zé qualquer tornou-se amigo do marquês
Solidário na dor
Que eu contei a vocês
Menos que eu queira ou mais que faça
É o fim do samba, é o fim da raça
Zé qualquer tá caducando
Desvalorizando
Como o tempo passa, passando
Virando fumaça, virando
Caindo em desgraça, caindo
Sumindo, saindo da praça
Passando, sumindo
Saindo da praça


Através de um samba, sem maldade, Chico relata a história de um Zé qualquer que, em pé de igualdade, passa a questionar o ex-todo poderoso Tamandaré. Onde estavam suas glórias, suas batalhas, seu amor? Se, por um lado, ele, Zé, está sem samba, sem dinheiro, sem paradeiro e sem Maria, Tamandaré está também sem medalhas, sem batalhas, sem nobreza e sem sua marquesa.
O autor contesta o presumido poder pretensamente ilimitado dos militares. No confronto entre um simples Zé e um Almirante, Chico, em um período de plena ascensão do poderio militar, prevê ou deseja o seu fim. Marquês de papel, estampado em uma nota desvalorizada, marca a risibilidade desse poderio. Onde estão as vitórias? Cadê o seu valor? O tempo tempo é inconstante e, se hoje tens força, cuidado, amanhã podes não a ter mais. Chico relativiza as coisas, nada é eterno. O tempo é implacável e passa tanto para o Zé qualquer, quanto para o Marquês. Vira fumaça, acaba com seu poder, tira-lhe da praça - espaço público. Cuidado, militares, a canoa vai virar, e esse mar não vai dar pé.
Esse tema se torna mais explícito e duro em Apesar de você, mais adiante analisada. Os temas e as preocupações presentes numa primeira fase vão também estar presentes no pós-Roda-viva. A temática não se alterna substancialmente, talvez sim a forma de expressá-la. O próprio compositor percebe isso e expressa em uma entrevista concedida a Sílio Bocanera, em 71, ao responder se houve ou não evolução em sua produção:
Olha, acredito que tenha havido uma evolução, sim, mas foi na maneira de dizer as coisas e não na mensagem. Não há quebra com o passado. O que eu escrevi antes foi importante na época e expressou o que eu sentia. A experiência acumulada me faz criar agora outros temas, talvez mais elaborados, mas isso não significa que tenha abandonado as formas simples.[34]

Em Pedro pedreiro, Chico expõe a realidade em que vivia boa parte dos trabalhadores brasileiros. Escolhe um pedreiro - o Pedro -, nordestino, sem dinheiro, a quem só resta esperar e cuja esperança está por um fio.
PEDRO PEDREIRO (1965)
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem

Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem (etc).

O verbo esperar aparece na música 44 vezes; esperança, uma. Outros verbos usados como ficar, pensar, passar, parecer, carecer, voltar, sonhar dão também a idéia de acomodação, falta de ação. Alguém que não consegue mais agir, desesperançado. A única ação possível é o retornar para a sua antiga condição - voltar atrás, para o Norte ou esperar a morte. A correlação entre os versos mostra que a diferença entre ambas não existe (Pedro pedreiro está esperando a morte ou esperando o dia de voltar pro norte), duas faces da mesma moeda.
Descreve a dura realidade do trabalhador braçal brasileiro. Vida sofrida, feita de espera por um amanhã melhor que não vem. Dentro da fase desencantada de Chico, não se percebe sinais de esperança. O filho também esperado, já no ventre da mãe, tem sua sina traçada: esperar também.
Na canção se questiona a própria esperança. Vale a pena esperar ou criar esperanças em outras pessoas se, de fato, não há indícios concretos de mudança? O sonho, em si é válido, bonito, traz o desespero de não se contentar mais com o que se tem, com o estado das coisas. Pedro pedreiro deseja voltar atrás, para a época quando não esperava mudanças, quando somente era um pedreiro pobre, sem sonhos.
Entrelinhas, percebe-se um questionamento do trabalho de “conscientização” feito pelas esquerdas no período, junto às camadas mais pobres. “Povo unido jamais será vencido”, conclamava a todos para lutar contra os opressores. Porém, quando as dificuldades surgiam, poucos continuavam na luta. Os acadêmicos-intelectuais voltavam para o seu mundo teórico. Eles pareciam não saber articular a teoria com a prática. Augusto Boal conta uma história que bem ilustra essa situação:
E eu me lembro que uma vez, patrocinado por esses CPCs, fizemos o espetáculo de uma peça para ligas camponesas. (...) Era uma peça exortativa, uma peça que terminava com todo mundo levantando o braço, punho fechado e com um fuzil de madeira na mão. A gente dava uma porção de palavras de ordem com o punho erguido e o fuzil de madeira na mão. (. . .)Eu me lembro que um dia terminou o espetáculo e veio um camponês. Ele chegou e falou: ‘Olha, nós estamos emocionados, porque vocês, que vêm lá de São Paulo, vocês pensam exatamente como nós. (. . .) A gente está tão feliz que vocês pensam como nós que nós pensamos no seguinte: agora a gente vai almoçar e depois do almoço vocês pegam os fuzis e vamos juntos desalojar o coronel que ocupou umas terras aí.’ Nós ficamos abalados e respondemos: ‘A gente pensa como vocês . O que a gente falou é verdade, a gente acha isso mesmo. Só o que não é verdade é o fuzil’. (. . .) O camponês olhou para nós e falou: ‘Bom, não tem problema. O fuzil é falso, mas vocês não são, vocês são de verdade. Vocês vêm com a gente, nós distribuímos os fuzis e vamos lá brigar.[35]

Foi uma situação muito traumática pois Boal percebeu que “nós, como artistas não tínhamos o direito de exortar ninguém a fazer aquilo que não éramos capazes de fazer.” Criou-se esperança numa parcela da população mas, quando veio o terror, a perseguição, não se soube enfrentá-los e resistir, e as pessoas ficaram a “ver navios” ou esperando o trem, esperando “o dia” que nunca veio. Chico faz um sério questionamento a uma esquerda dogmática, que acreditava que a revolução se faria de qualquer modo, a seu tempo. Marcaram o encontro com a revolução, mas esqueceram de avisá-la, ou de, no dia-a-dia, lutar por sua realização.
Nesta fase Chico deixou de ter uma participação política direta por descrer na proposta, na maneira de se encaminharem as lutas. De um lado, um governo militar, a ditadura; de outro, uma proposta de esquerda dogmática/esquemática. Como ter esperança?
Em Ano Novo, a fina ironia de Chico bate ponto novamente.
ANO NOVO (1967)
O rei chegou
E já mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos
Hastear bandeiras
E eu que sou menino
Muito obediente
Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano Novo

Há muito tempo
Que esta minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E quem já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano Novo

A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Quero ser seu par
E ao meu amigo que não vê mais graça
Todo ano que passa
Só lhe faz chorar
Eu disse:
Homem, tenha seu orgulho
Não faça barulho
O rei não vai gostar

E quem for cego veja de repente
Todo azul da vida
Quem estiver doente
Saia na corrida
Quem tiver presente
Traga o mais vistoso
Quem tiver juízo
Fique bem ditoso
Quem tiver sorriso
Fique lá na frente
Pois vendo valente
E tão leal seu povo
O rei fica contente
Porque é Ano Novo

O menino, na primeira estrofe, passa rapidamente da indiferença à comoção, pois o autoridade - o Rei - quer que todos se alegrem, pois o novo está chegando - no caso o ano -, ele, obediente, não contesta a ordem.
A segunda estrofe lembra Pedro pedreiro, pois acabaram as esperanças, há muito tempo as coisas são sempre iguais: o sofrimento, o trabalho, a vida difícil. As promessas também são sempre as mesmas, não conseguem mais enganar a ninguém, afinal é sempre o mesmo truque.
Já que nada pode acontecer, as pessoas acabam fingindo alegria. Se o rei mandou nos alegrarmos, vamos então nos alegrar, pois quem já viu de pé o mesmo velho ovo, hoje fica contente porque é Ano Novo.
A realidade, porém, é muito dura, afinal esta minha gente vai vivendo a muque, sem perspectiva, no mesmo batente, no mesmo batuque. Alegria, o novo e colorido, nem que seja na forma de um vestido para sua nega comemorar, não tem lugar. Pede a mulher para que finja que não está descalça, dance alguma valsa, mais não se pode fazer.
Alerta para os descontentes, aqueles que não vêem mais graça, para não fazerem barulho, não reclamarem, não reivindicarem pois o rei não vai gostar. É proibido manifestar o descontentamento, finja, portanto.
A ditadura implantada forja números, silencia os descontentes, exila, mata ou prende quem dela discorda. Oculta-se a verdade. Quer se vender uma imagem que não é real - Quem tiver sorriso fique lá na frente, pois vendo valente e tão leal seu povo, o rei fica contente. Se o rei quer o sorriso, mostremos a ele o sorriso. Se ao rei não interessa ver a realidade, mascarem-se os fatos, oculte-se o sofrimento, a cegueira, a doença, a falta. Ele tem o poder. Mas o terá para sempre? Já antes vimos que o Zé qualquer faz Tamandaré dar-se conta de que o tempo é implacável, o barco vai virar e, o pior, é que o mar não dá pé.


5. Postura política - manifesto.
Com a assinatura do Ato Institucional nº5 pelo governo militar, a situação política e cultural do país complicou-se. Chico, sentindo na própria pele o acirramento da censura a ponto de se ver obrigado a exilar-se na Itália, passa a criar canções em que o cidadão fala mais alto. Diante de um governo que claramente impedia o acesso ao espaço público de artistas-intelectuais que tivessem uma proposta contrária aos seus parâmetros, eles se uniram num único propósito: derrubar esse governo, acabar com a censura. O inimigo comum acaba por unir as mais diversas tendências à esquerda.
Chico ocupou um lugar proeminente nesse contexto. Suas músicas passaram a ter um destinatário preciso: o governo militar. Suas composições adquiriram um tom de manifesto intelectual, dirigiam-se contra um inimigo preciso e buscavam conscientizar as pessoas, fazê-las refletir sobre a sua própria realidade e, a partir disso, lutar contra um governo arbitrário que censurava, em última instância, a democracia e com ela a liberdade de expressão e de criação. Nesse contexto surgiram composições como Roda-viva, Cara a cara, Rosa dos ventos, Agora falando sério e, especialmente, Apesar de você.
Em Roda-viva, composição usada na peça com o mesmo nome, dirigida por José Celso Martinez, Chico descarrega todo o seu descontentamento diante de um sistema que acaba por coisificar as pessoas, uma roda-viva que arrasta consigo o destino das pessoa, as roseiras, o violão, a saudade... O autor desenha o seu auto-retrato em um período em que se sentia conduzido pelo esquema do sucesso.
RODA-VIVA (1967)
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo ...

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo ...

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo ...

Perpassa toda a composição uma sensação de agonia, desesperança, como quem partiu ou morreu. Roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião. O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração. O autor, qual uma criança, após tanto rodar, não se sente com os pés no chão, perdeu o domínio sobre si mesmo. Apesar de querer ter voz ativa e em seu destino mandar, de tentar ir contra a corrente, não consegue resistir. Sente-se engolido por um sistema mais poderoso que ele.
Ilustrativo dessa sensação de aprisionamento é seu depoimento dado em pleno apogeu de seu sucesso, em 1966, ao Museu da Imagem e do Som, ao ser perguntado sobre como se sentia diante da máquina do sucesso:
Me sinto mal pra burro. (. . .) Pois é, isso atrapalha um bocado, porque eu pedi para acabar o show dia 15, para descansar um pouco, mas não eu não vou poder descansar, não. (. . .) Estou vendo que até o fim de ano eu vou ter que... sumir... Não. Eu estou vendo que até o fim de ano, vou ter que entrar na máquina e não tem jeito de sair.[36]

Ou então, já fora desse sufoco:
O período de badalação em minha carreira, a época dos festivais e do apertar botão na televisão aconteceu sem que eu tivesse programado e, muito menos, pudesse controlar.[37]

O compositor sente-se interditado. Sua vida, seus sonhos, seu destino, sua música, e mesmo suas saudades parecem estar saindo de seu comando. Essa música e a peça com o mesmo nome representaram um momento importante na carreira e na vida de Chico Buarque. Ele buscava romper com a imagem de bom moço, bem comportado, que se deixava levar por produtores e pelo mundo da indústria do sucesso, fazendo tudo o que lhe mandavam fazer.
A peça Roda-viva foi um divisor de águas na carreira de Chico. Não que ele tivesse alterado substancialmente seu processo de criação, mas por significar uma reviravolta na forma como sua imagem passou a chegar ao público. Ele próprio constatou esse processo:
A figura do bom moço, romântico, comportado, ainda persiste, mas deixou de me preocupar. Aliás, só vim a perceber que ela existia depois que fiz Roda-viva e deu aquela confusão toda. Algumas pessoas diziam que o diretor José Celso Martinez Corrêa havia deturpado meu texto. Outras, que eu havia escrito a peça para quebrar a imagem anterior. (. . .) Acontece que nunca fui o que me imaginaram, ora.[38]

Ruy Castro, em artigo publicado em 68, sintetiza a mudança de postura de Chico diante de seu público:
Depois da peça (. . .) Chico transfigurou-se no sujeito que também dizia palavrão e também ia ao banheiro: sua peça era uma pedrada na máquina que pretende transformar seres humanos em objetos de lazer de espectadores insaciáveis. O mecanismo: a televisão. Manipulando por controle remoto os gostos, as atitudes e o comportamento da massa, coisificando Chico Buarque e deificando o sabonete Palmolive - o que significa, na prática, colocar num mesmo plano pessoas & objetos, desde que isto reverta em lucro para a empresa capitalista.[39]

Se, na primeira estrofe, a triste e muda roda-viva - como afirma na composição da mesma época A televisão - interferia no destino do compositor, na segunda, afeta seus sonhos, e, na terceira, interfere em sua própria produção musical. A interdição do espaço público busca calar o cantor popular pois a intervenção militar acaba com a roda de samba, impede de fazer serenata, retira a viola do cantor. Mesmo que este deseje permanecer na rua, com sua viola a cantar, se vê impedido de isso fazer, afinal o samba, a viola, a roseira, um dia a fogueira queimou. Como no tempo da “Santa Inquisição”, quando as pessoas que ousassem discordar da doutrina oficial e tivessem uma postura desviante eram consideradas bruxas e queimadas em praça pública, com a chegada de “A Redentora”, aqueles que não se adaptavam às normas estabelecidas passaram a sofrer duras perseguições, com uma diferença, não tinham direito sequer a um julgamento. Se não eram queimados em praça pública, eram dessa praça afastados, tendo seus sonhos - a roseira - cortados e os instrumentos de construção e expressão de suas idéias “queimados”: do cantor, o samba, o violão; das lideranças estudantis, suas agremiações; do trabalhador, seus sindicatos; dos intelectuais acadêmicos, a sala de aula, a revista, o livro, o jornal.
Uma saudade cativa invade o peito do cantor, fazendo força pro tempo parar, para tentar, por certo, deixar de rodar e novamente tomar a própria vida nas mãos. Mas mesmo a saudade é carregada pela roda-viva. Nem o passado escapa. Relido com o enfoque do vencedor, busca abafar e esconder, sob os escombros, os anti-heróis esquecidos. Nem mais a saudade é possível.
Implantado o AI-5, a censura sobre a produção acadêmica se acirrou bem como a perseguição a seus criadores. Chico Buarque, que já havia tido algumas de suas músicas proibidas, passou a ser constantemente chamado pelos censores para explicar-se. A situação mais grave ocorreu quando da apresentação da peça Roda-viva, no Rio, em 18 de julho de 1968. No final do espetáculo, um grupo de homens armados esperou a saída do público do teatro Ruth Escobar e passou a atacar os atores. A revista Manchete assim relatou o fato:
Quando as luzes já iam sendo apagadas no Teatro Ruth Escobar, na fria noite da última quinta-feira, ninguém percebeu que um grupo de homens usando luvas negras havia permanecido na platéia. Os espectadores à saída, comentavam Roda-viva de Chico Buarque de Holanda, a que acabavam de assistir. Os atores mudavam de roupa nos camarins, os contra-regras tratavam de desmontar o cenário. De repente, ouviu-se um apito agudo e os homens de mãos negras começaram a gritar palavrões e armados de cassetetes, cabos de aço e revólveres, invadiram o palco, ocupando a cabine de iluminação e dirigindo-se aos bastidores. Os extremistas de direita iniciavam o ataque. Enquanto fachos de luz colorida riscavam a escuridão do teatro, caíam os primeiros feridos. O técnico de iluminação Vicente Dualde era pisoteado e os spot-lights quebrados. O contra-regra José Luís, jogado ao solo, tinha a bacia fraturada. Nos camarins, as atrizes eram o alvo principal. Marília Pera, Margô Baird e Valquíria Mamberti, esta última grávida, eram despidas e brutalizadas. Cortinas foram rasgadas e cadeiras destroçadas a pontapés. Até que se ouviu novamente o apito estridente e os homens de luvas negras se retiraram, correndo organizadamente. A operação-violência dura três exatos minutos.[40]

A montagem da peça, esses fatos relatados, o endurecimento acentuado da censura no país e as perseguições políticas à classe artística, marcaram uma virada na postura de Chico. Ele passou a novamente engajar-se numa luta explicitamente política, da qual havia se afastado desde 64, na época da faculdade, pois, de acordo com Chico, “em fins de 68 fui chamado à realidade. Realmente aí pisaram meus calos”.[41]
Um marco dessa mudança foi a canção Agora falando sério. Toda ela é feita em referência a esse momento de transição vivido pelo autor. Vaiado pelos estudantes de esquerda por Sabiá, acusado de lirismo e de não enfrentar o sistema; perseguido pela direita pela sua postura crítica, Chico se vê na contingência de fazer alguma coisa.

AGORA FALANDO SÉRIO (1969)
Agora falando sério
Eu queria não cantar
A cantiga bonita
Que se acredita
Que o mal espanta
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá
Dou um fora no violino
Faço a mala e corro
Pra não ver a banda passar

Agora falando sério
Eu queria não mentir
Não queria enganar
Driblar, iludir
Tanto desencanto
E você que está me ouvindo
Quer saber o que está havendo
Com as flores do meu quintal?
O amor-perfeito, traindo
A sempre viva, morrendo
E a rosa, cheirando mal

Agora falando sério
Preferia não falar
Nada que distraísse
O sono difícil
Como acalanto
eu quero fazer silêncio
Um silêncio tão doente
Do vizinho reclamar
E chamar polícia e médico
E o síndico do meu prédio
Pedindo para eu cantar

Agora falando sério
Eu queria não cantar
Falando sério

Agora falando sério
Preferia não falar
Falando sério



A realidade lúgubre expressa-se pelo universo vocabular escolhido: sério, mal, chute, tiro, mentir, enganar, iludir, desencanto, traição, morte, cheirar mal, sono difícil, silêncio, doente, polícia, médico dão o tom da fase difícil pela qual o compositor e o próprio país passavam.
Sentindo-se incompreendido pelos então denominados jovens engajados e perseguido pela ditadura militar, Chico cria Agora falando sério a fim de demonstrar a sua insatisfação.
De um lado a esquerda lhe cobrava uma postura crítica mais incisiva, exigindo que deixasse o lirismo e falasse sério. De outro, a censura e o governo militar perseguia-o por suas críticas ao poder estabelecido. A partir do AI-5, o governo militar passou a exercer um poder totalitário, outorgando a si mesmo a autoridade de prender, censurar músicas, peças de teatro, reportagens, cassar mandatos eletivos, fechar jornais e revistas, aposentar professores universitários, colocar na ilegalidade agremiações estudantis e políticas.
Se é para falar sério, vamos então, de fato falar sério. Chico passa, então, a demonstrar o grotesco da situação que ele e o país viviam, através de uma letra sedimentada no contra-senso. Já que não pode relatar o que acontece e da forma como deseja, mostra o seu contrário.
Na primeira estrofe, o paroxismo está na pretensa rejeição do autor a suas composições anteriores. Os “engajados” queriam uma forma mais incisiva? Então, o compositor renega a própria criação anterior e demonstra descrença no seu poder de intervenção. Dá um chute no lirismo, um tiro no sabiá, foge para não ver a banda passar, afinal essas cantigas podiam ser bonitas, mas não espantaram o mal. Ele falhou e, por isso, quer silenciar e não mais cantar. A própria natureza, na segunda estrofe, acompanha o desvirtuamento social e desatina pois o amor-perfeito trai, a sempre-viva, morre, e a rosa cheira mal.
A censura não queria que ele calasse? Então não precisam mais se preocupar. O contra-senso se estabelece quando o cantor resolve, por vontade própria, calar sua voz, não cantar e não falar, mas seu silêncio passa a incomodar seus vizinhos que chamam a polícia e médicos a fim de que o forcem a novamente cantar.
A roda-viva resultou numa pressa danada - como ele afirma na composição Cara a cara feita à mesma época, com essa mesma temática -, impedindo-o de parar para pensar, de olhar-se no espelho, de estar cara a cara consigo mesmo e com a realidade que o cercava. Nem mais podia prestar atenção na canção e no violão, objetos inúteis, vivendo uma vida sem emoção, alguém com um peito de lata e um nó de gravata no coração.
CARA A CARA (1969)
Tenho um peito de lata
E um nó de gravata
No coração
Tenho uma vida sensata
Sem emoção
Tenho uma pressa danada
Não paro pra nada
Não presto atenção
Nos versos desta canção
Inútil

Tira a pedra do caminho
Serve mais um vinho
Bota vento no moinho
Bota pra correr
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara a cara
Cara a cara a cara a cara
Bota lenha na fornalha
Põe fogo na palha
Bota fogo na batalha
Bota pra ferver
Bota força nessa coisa
Que a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara a cara a cara

Tenho um metro quadrado
Um olho vidrado
E a televisão
Tenho um sorriso comprado
A prestação
Tenho uma pressa danada
Não paro pra nada
Não presto atenção
Nas cordas desse violão
Inútil

Tira a pedra do caminho (...)

Tenho o passo marcado
O rumo traçado sem discussão
Tenho um encontro marcado
Com a solidão
Tenho uma pressa danada
Não moro do lado
Não em chamo João
Não gosto nem digo que não
É inútil

Tira a pedra do caminho (...)

Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço agita e chora
Cumpre o seu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara a cara a cara
Com o que não quer ver



Critica o sistema capitalista, particularmente a indústria cultural, cujo objetivo principal, senão o único, é o lucro de seus donos. A indústria do sucesso retira do caminho tudo o que atrapalha, impulsiona a máquina com força e sem dar tréguas às pessoas que estão sob seu comando a fim de que não haja tempo para que elas pensem e dêem-se conta do que de fato acontece.
.No estribilho, dois temas são ressaltados: o queimar - lenha na fornalha, fogo na palha, fogo na batalha - e a força, metáforas de um sistema pródigo em tudo “queimar” (idéias, músicas, pessoas) para se fortalecer e fortalecer seus lucros, seus objetivos.
Chico, na segunda estrofe, com um sorriso comprado a prestação, uma pressa danada, demonstra toda a sua insatisfação e o sentimento de estar no lugar errado. A televisão, o sorriso forçado, a indústria do sucesso, a roda-viva a traçar os rumos de sua vida, determinando seus passos, trazendo-lhe a solidão. Apesar de não gostar, não consegue se desvencilhar, não consegue dizer não. Era o seu dever servir a coisa, isto é, um sistema que coisifica e que, a todo custo, quer impedir que as pessoas fiquem cara a cara consigo e com a realidade? Ele próprio afirma:
E entrei pouco a pouco na chamada roda-viva do show. Viajava muito, me desliguei disso [atuação política]. Meu interesse de atuar de certa forma, atuar politicamente e efetivamente, esse interesse ficou de lado.[42]

Nessas composições - Roda-viva e Cara a cara - o sujeito passa por um processo de aniquilamento, pois, transformado em objeto, passa a ser manipulado por forças maiores que ele - não claramente identificadas - e contra as quais nada consegue fazer.
Em Roda-viva, Cara a cara e também Rosa dos ventos, em sua primeira parte, o objeto das críticas de Chico é o sistema capitalista, que aliena e coisifica as pessoas, impedindo-as de criarem seus destinos, de tomarem suas vidas em suas mãos.
Em Rosa dos ventos, na primeira parte, o tom lúgubre predomina:
E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima
Pra socorrer

E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr

O universo vocabular escolhido diz tudo: escândalo, medo, trágico, pálido, lágrima, lástima, trevas... realidade triste. Impuseram à gente - artistas, intelectuais acadêmicos, líderes estudantis e sindicais... - o triste hábito de ver o tempo correr, de tudo aceitar, inclusive uma ditadura que faz as pessoas caminharem pelas trevas, murmurarem entre as pregas, interditando-lhes a liberdade de expressão, impondo o sussurro, o medo, o sacrifício.
Mas o tom lúgubre passa e dá lugar à esperança.
Mas, sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena
E chovesse o perdão

E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios
O sorriso e a paixão

Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa-dos-ventos danou-se
O leito dos rios fartou-se
E inundou de água doce
A amargura do mar

Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde
O seu despertar

O tempo do silêncio se esgotava. Mais como desejo do que como fato, ou então como aviso, Chico passa a descrever a multidão que desperta de seu sono dos séculos. As trevas transformam-se em amanhecer, o sorriso e a paixão retornam mesmo nos lábios dos mais prudentes, para não dizer descrentes.
A “amargura”, até então reinante, se vê invadida pela esperança, pois a multidão zangada, não acatará mais a direção pré-determinada - a rosa-dos-ventos danou-se -, não aceitará os limites impostos - o leito dos rios fartou-se e inundou de água doce a amargura do mar. O aviso está dado: se a situação permanecer nessa trevas, a revolta pode vir e ela será violenta, tal uma enchente amazônica ou uma explosão atlântica.
A esperança se fortalece e se reafirma em Apesar de você. O inimigo, nas três músicas anteriores, subentendido, agora é caracterizado e a discussão se estabelece de forma direta, sem meias palavras. Identificado claramente contra quem se lutava, sobrevém a possibilidade da vitória. O tom de ameaça, subjacente em Tamandaré, agora se torna explícito: ditadura militar, o seu poder é risível, o tempo vai passar e as coisas vão ser diferentes. O amanhã vai ser outro. A esperança retorna à temática buarqueana justamente no momento em que a ditadura aperta o cerco.

APESAR DE VOCÊ (1970)
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal

À medida que as estrofes vão se sucedendo, Chico vai tecendo críticas ao governo militar que, por meio da repressão e da censura, causou danos à nação, e o ameaça com as transformações que virão com o outro dia, momento esse em que o governo ditatorial terá que prestar contas à sociedade pelos sofrimentos que causou.
A canção inicia apresentando o autoritarismo - hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão -, medo e desconfiança - a minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão. O ataque ao regime militar se inicia, pois foi ele que inventou esse Estado, e com ele a escuridão, a repressão. A ditadura traz o pecado, mas não quer trazer a democracia - perdão.
O tempo presente é marcado pela escuridão - o sofrimento, amor reprimido, grito contido, samba no escuro, tristeza, lágrima, penar - de uma ditadura que queria impedir a vida florescer. Mas, o amanhã nascerá mesmo contra a vontade do governo ditatorial e será marcado pela luz de um céu a clarear, pela vida, euforia, cantar, água nova, amar ininterruptamente, coro cantando e poesia.
Em um primeiro momento, parece que Chico retoma a temática “o dia que virá” - típica da canção de protesto dos anos 60: Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Diferente, porém, da postura que acreditava que a utopia se cumpriria espontaneamente, Chico afirma que o dia virá, não espontaneamente, mas como conseqüência do protesto e da ação conjunta das pessoas. A ditadura não conseguiria abafar por muito tempo nosso coro a cantar, isto é, a união das pessoas para conquistar novamente a democracia. O nosso coro traria a transformação.
Volta a esperança. É possível acabar com a ditadura. Eles, os militares no poder, não são eternos. Se eles inventaram esse tipo de Estado, Chico afirma que os cidadãos podem subvertê-lo, reinventá-lo. O Estado não é uma instituição dada. Se foi criado, pode ser destruído e reconstruído. O amanhã, a esbanjar poesia, poderá ter um céu claro, jardins florescendo, água nova brotando, desde que o nosso coro esteja suficientemente forte e unido para romper os grilhões, para acabar com o silêncio.









[1] Chico afirma em entrevista concedida a Melquíades Cunha Júnior (1992, p. 10) que: “A partir da adolescência eu comecei a entrar no escritório dele, e a minha entrada foi pela porta da literatura. (. . .)Na literatura, ele também sabia tudo e, comigo, o diálogo foi conquistante a partir desse momento.”
[2] De acordo com resenha crítica elaborada por Sérgio Augusto (1992), em que se analisa a pessoa e a obra de Sérgio Buarque de Hollanda.
[3] Chico esclarece sobre a concepção de cultura do pai que, como podemos ver, influenciou o filho: “Longe de meu pai qualquer posição elitista em relação à cultura. Ele tinha uma admiração muito grande pela cultura popular brasileira, uma coisa que faz parte do pensamento modernista”(Cunha Júnior, 1992, p. 6).
[4] A teoria do “homem cordial” foi desenvolvida por Sérgio Baurque de Hollanda e apresentada em seu livro Raízes do Brasil. Sérgio Augusto (1992, p.4), ao analisar essa teoria, afirma: “Ao ressaltar a lhaneza no trato, a hospitalidade como traços definidos do caráter brasileiro, Sérgio (. . .) referia-se, no fundo, à cordialidade entre membros de uma mesma classe social, junto aos quais permaneceria viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. (. . .) Nossos ricos continuam cordiais entre si. E, quando muito, paternalistas com os seus inferiores.”
[5] Denzim, 1984, p.32.
[6] Depoimento dado por Sérgio Buarque de Hollanda para a revista Pais e Filhos em 1968, reproduzida pela Folha de São Paulo, 1991, p.5.
[7] Estudou em colégio de religiosas - Externato Nossa Senhora de Lourdes - e de padres - Colégio Santa Cruz. Mesmo no tempo que passou na Itália - entre 62 e 63 - estudou em colégios americanos ligados a congregações religiosas.
[8] Chico declara em entrevista que, “antes mesmo da Faculdade, fui uma pessoa preocupada com os problemas sociais, um pouco até por experiências através de movimentos de um grupo de assistência social, ou através do colégio de padres, etc e tal. Coisas como levar cobertor, levar não sei o que para quem está ali na Estação da Luz, visitar presídios, e coisas assim. E isso está refletido na minha música daquela época; tenho certeza que sim” (Chico... , O Globo, 1979, p.6).
[9] Buarque de Hollanda, 1966.
[10] Chico manifesta uma resistência a essas criações iniciais, a ponto de não incluí-las em seu songbook. Em especial, Marcha para um dia de sol foi a sua primeira música gravada, mas não é bem aceita por seu autor: “Quando eu acreditava nela, ninguém acreditava em mim. Eu era muito cru (. . .). Aí quando parei de acreditar nela, comecei a ficar mais conhecido, então, eles quiseram gravar. Aí a música não tinha mais sentido nenhum. (. . .)Depois quando veio a revolução foi pior porque achavam que eu era comunista” (Buarque de Hollanda, 1966).
[11] “A descrença nO DIA vem ligada à dúvida quanto ao significado da esperança e do esperar. Esperança que resulta no ‘desencanto’ d’A banda, na ‘desilusão’ de Meu refrão, no ‘desengano’ de Sonho de um carnaval ou a esperança fingida de Ano Novo, a esperança frustrada de Olê olá, o ‘esperar sentado’ de A televisão” (Galvão, 1976, p. 98).
[12] Hollanda, 1992, p. 17.
[13] Ibid., p.19
[14] Com a palavra Chico Buarque: “Eu entrei para a arquitetura por falta de alternativa naquele momento. Eu não queria ser advogado, médico, essas coisas” (Cunha Júnior, 1992, p.10).
[15]De acordo com seu pai, “da música popular, seus ídolos eram Ismael Silva, Caymmi e Ataulfo Alves. Mais tarde, João Gilberto, de quem procurava imitar o estilo. (. . .)Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel” (Sérgio B. de Hollanda, 1991, p.5).
[16] Costa, O Jornal, 1969.
[17] Chico afirma em entrevista que “eu sei que toco violão desde a época em que aprendi a ouvir João Gilberto. Esse foi meu passo inicial, não foi Noel nem qualquer dos outros que citei, foi o João, a música de Tom Jobim e a letra de Vinícius” (Ibid.).
[18] Chico Buarque, O Globo, 1970.
[19] Sant’Anna, 1978, p.99.
[20]Jornal do Brasil, 1966. Perceba-se que esse depoimento foi dado em 1966, portanto no início de sua carreira, antes de passar pelas perseguições todas e por uma série de críticas.
[21] Costa, O Jornal, 1969.
[22] Ibid.
[23] Chico..., O Globo, 1966. Para o Jornal do Brasil, Chico assim se expressa: “Esse problema não foi criado por mim e nem posso solucioná-lo. Sou contra a censura e pronto. Se ela aliviar um pouquinho, é bom. Se ela sumir, é o ideal. Eu não sei quando isso pode acontecer” (Chico Buarque..., Jornal do Brasil, 1975).
[24] Bocanera, Jornal do Brasil, 1971. Chico ja havia falado sobre isso em outro depoimento: “De cada três músicas que faço duas são censuradas. De tanto ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu mesmo estou começando a me autocensurar. E isso é péssimo” (Chico..., O Globo, 1971, p.13).
[25] Entrevista publicada pelo jornal Clarin, quando da temporada de Chico em Buenos Aires, com a peça A Ópera do Malandro (Não soy un político..., Zero Hora, 1981, p.1).
[26] Ver Vasconcellos, 1977.
[27] Ventura, Zero Hora, 1976.
[28] Sant’Anna, 1978, p.102.
[29] Adélia Menezes (1982, p.64), sobre esse mesmo tema, afirma que Carolina, “na verdade, é uma canção extremamente significativa de um determinado momento histórico: aquele em que uma parcela da intelectualidade brasileira, alijada da práxis política, tende a se refugiar em situações de melancolia e inação; da janela, vê (ou não vê) o tempo passar.”
[30] Menezes, 1982, p.31.
[31] Hollanda, 1996.
[32] De acordo com Menezes (1982, p.24), “o exílio tornou-se uma realidade vivida por todos os brasileiros conscientes. Exílio real dos que tiveram que procurar por outro país, ou exílio interior daqueles que ficaram, mas afastados de seus projetos existenciais.”
[33] Não esquecendo-se também a crítica velada a desvalorização da moeda, afinal a efígie do almirante Tamandaré aparecia nas notas de um cruzeiro de então. Essa música foi proibida por ser considerada ofensiva à imagem do patrono da marinha.
[34] Bocanera, Jornal do Brasil, 1971.
[35] Boal, 1981, p. 9.
[36] Buarque de Hollanda, 1966. Depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 1966.
[37] Bocanera, Jornal do Brasil, 1971.
[38] Ibid.
[39] Castro, Correio da Manhã, 1968.
[40] Manchete, 1968.
[41] Chico..., O Globo, 1979, p.6.
[42] Chico..., O Globo, 1979, p.6.