28.12.07

João e a Bossa, primeiros estudos.




Raquel Valadares




Chega de Saudade



Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade
A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza, é só tristeza
E a melancolia que não sai de mim
Não sai de mim, não sai

Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertados assim, colados assim, calados assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De viver longe de mim
Não quero mais esse negócio
De você viver assim
Vamos deixar desse negócio
De você viver sem mim

Tom Jobim e Vinícius de Moraes


Introdução.

Devo confessar que não entendo de música. O capítulo da Bossa-Nova é, porém, central na estante lá de casa. Está certo que não somos assíduas compradoras de CD, mas freqüentamos o Belmiro[i]. Isso já é alguma coisa.

A minha ignorância, porém, é bem maior do que eu pensava. Mesmo hoje, após a pesquisa para este trabalho, acredito na absoluta relevância de João Gilberto para a constituição da Bossa-Nova, mas, felizmente, sei que Bossa é mais do que sua “batida”.

O que é, portanto, a Bossa-Nova?

Recorri ao querido amigo Gomide – médico anestesista, músico e agitador cultural – que agitasse um estudo musical para mim. Em um dia descobri o Tamba Trio e Leny Andrade, além de, claro, perceber melhor a circunscrição da Bossa-Nova na história e na teoria musical. Com base neste encontro, elaborei um conjunto de apontamentos e indagações, mas, sobretudo, impressões musicais e, sem pestanejar, dei-lhe o nome de “primeiros estudos”. Piada à parte, espero validar-se.
Rameau, Fauré e Lundu

Assim Gomide começou a lição. Empunhando o violão, demonstrou as bases da teoria de harmonia clássica de Rameau[ii]: a sucessão de acordes perfeitos, sem nenhuma alteração.

O samba brasileiro, prosseguiu Gomide colocando um pagode das antigas, foi a mistura de Rameau com Lundu africano. A sonoridade previsível e anti-dissonante dos acordes perfeitos e o tempo fraco do ritmo do Lundu eram a tônica até Fauré[iii] entrar em cena. Para ele - e mais uma vez o violão - os acordes de sétima e nona não são dissonantes e a quinta pode ser alterada sem comprometer a harmonia.

Essa nova linguagem harmônica implicou uma complexificação das melodias do samba. A geração de compositores formada por Ary Barroso, Garoto, Luis Bonfá e Laurindo de Almeida, pré-Bossa-Nova, deu conta do recado. A riqueza de suas composições, seja pela harmonia, seja pela melodia, permitiram a Bossa-Nova surgir.

Fundamentos da Bossa

Se o samba de Ary Barroso era substrato para a Bossa, em que ela se diferencia? Na complexidade harmônica, baseada em Fauré, e na formação orquestral, ambos elementos do “arranjo” bossa-novista que se pretendia minimalista tanto na harmonia, na melodia, quanto no ritmo (o “tempo fraco”, ou ritmo sincopado, do Lundu permanece e ganha destaque).

O estilo minimalista de cantar também é pré-Bossa. Já havia Dick Farney e Mário Reis. E mesmo durante a Bossa havia certa diversidade no emprego da voz, compare por exemplo a voz aveludada de Leny Andrade com a voz de Nara Leão.

Samba de uma nota só

Eis aqui este sambinha feito numa nota só
Outras notas vão entrar mas a base é uma só
Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer
Como eu sou a conseqüência inevitável de você

Quanta gente existe por aí que fala fala e não diz nada,
Ou quase nada
Já me utilizei de toda a escala e no final não deu em nada,
Não sobrou nada

E voltei pra minha nota como eu volto pra você
Vou contar com uma nota como eu gosto de você
E quem quer todas as notas: ré, mi, fá, sol, lá, si, dó
Acaba sem nenhuma fique numa nota só

Tom Jobim e Newton Mendonça

Samba-bandeira e outras Bossas

“O fato é que os músicos bossa-novistas”, como João Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça, Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Nara Leão entre outros, “passaram a considerar o repertório anterior de sambas-canções e tangos abrasileirados melodramáticos e inadequados aos novos tempos. Imbuídos de uma atitude experimental, voltaram-se, embora de maneira anárquica, para a pesquisa de um estilo musical compatível com as novas linguagens que se desenvolviam tanto no exterior (principalmente a do jazz norte-americano) quanto no Brasil, particularmente no Rio”[iv].

Bossa-Nova é um estilo musical. João Gilberto foi quem o introduziu a partir da releitura do samba tradicional. Samba, samba-canção ou bolero foram deslocados do sentimentalismo e dramaticidade padrão com a maneira de interpretar “cool” inaugurada por João. Além do jogo harmônico entre voz e violão, têm o canto à meia voz, o “timming” perfeito e nenhuma ênfase emotiva. Em 1959 João lançou o disco “Chega de Saudade”, com direção musical de Tom Jobim[v]. A parceria se repete outras duas vezes, em 1960 com o disco “O Amor o Sorriso e a Flor” e em 1961 com “João Gilberto”.

Dentre outras canções transformadas em Bossa por João: “Eclipse” de Lecuona, “Estate” de Bruno Martino, “Besame Mucho” de Consuelo Velásquez e Sonny Skylar.
“João Gilberto é um baiano, "bossa-nova" de vinte e seis anos.
Em pouquíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. Nossa maior preocupação, neste "long-playing" foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade. Nos arranjos contidos neste "long-playing" Joãozinho participou ativamente; seus palpites, suas idéias, estão todas aí. Quando João Gilberto se acompanha, o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele. João Gilberto não subestima a sensibilidade do povo.
Ele acredita, que há sempre lugar para uma coisa nova, diferente e pura que - embora à primeira vista não pareça - pode se tornar, como dizem na linguagem especializada: altamente comercial. Porque o povo compreende o Amor, as notas, a simplicidade e a sinceridade. Eu acredito em João Gilberto, porque ele é simples, sincero e extraordinàriamente musical.
P. S. - Caymmi também acha.”
Antonio Carlos Jobim
Contra-capa de “Chega de Saudade”

Bossa é não é Jazz

Em 2006 estive em Nova Iorque na ocasião do “NY Jazz Festival” e para a minha surpresa, o Brazilian Jazz, que ocupava incrível destaque na programação, era Bossa-Nova.

Santuza Cambraia Naves aproxima Jazz e Bossa quanto à transgressão aos padrões harmônicos da música popular convencional. “Por exemplo, no momento exato em que se pronuncia a silaba tônica da palavra ‘desafino’, surge no plano da música um acorde imprevisto, sendo que a nota seguinte em semitom abaixo do que seria de se esperar (uma blue note, para empregar a terminologia jazzística)”.

Há, contudo, uma grande distinção entre Jazz e Bossa: no Jazz há improviso sobre o tema, na Bossa, não. Ainda mais na Bossa de João Gilberto, que notoriamente estuda harmonia e melodia da música até chegar a sua precisa criação.

Eliseth e João

Gomide viveu os tempos de Bossa. Freqüentava o Beco das Garrafas em Copa, sabe o que diz. A memória de Eliseth Cardoso tem um significado todo especial, pois ela era cantora da geração anos 40, da rádio, de estilo grandiloqüente, e ainda assim foi quem lançou a Bossa-Nova.

O disco “Canção do Amor Demais”, de 1958, já trouxe composições bossa-novistas de Tom e Vinícius e, já na primeira faixa “Chega de Saudade”, a “canja” do João Gilberto. Eliseth cantava de modo “antigo” o novo e improvisava, como uma grande intérprete, dentro da harmonia – complexa – bossa-novista.

No ano seguinte João lançou sua versão de “Chega de Saudade”, canção que o acompanha por muitos discos, e apresentou seu estilo único de interpretar. Minimalista, ele reestrutura a linguagem harmônica e melódica com o diálogo entre divisão silábica e dos versos, e divisão harmônica do violão. Não há canto sem instrumento para João Gilberto.

Black & White
(trecho)

“Por que
o açúcar
branco-branco
o negro-negro
tem de fazê-lo?
O charuto preto
não vai bem com seu cabelo,
combina é com o pêlo
negro de um negro.
E se o café
com açúcar
lhe apraz,
por que o sr. mesmo não o faz?”
Maiakovski
Tradução Augusto de Campos


Voz e violão construtivistas

“Chega de Saudade”, “na leitura de João Gilberto do ano seguinte, voz e violão substituem a profusão de instrumentos da gravação de Eliseth. Não se trata, entretanto, de uma questão apenas de escolha de instrumentos, mas da maneira articulada de usá-los, criando um tipo de divisão harmônica em que a voz não coincide exatamente com o acompanhamento do violão, de modo que a linha melódica está ora ligeiramente adiantada, pra ligeiramente atrasada em relação ao ritmo marcado pelo instrumento”.

O estilo intimista e a postura camerística de João são marcos da sua sensibilidade. À maneira construtivista, João interpreta as canções e marca a década de 50, como Augusto e Haroldo de Campos, poetas, Oscar Niemeyer, arquiteto, e Hélio Oiticica, artista plástico, marcaram. Com uma coisa em comum, eram todos construtivistas àquela época (o concretismo e o neo-concretismo eram movimentos construtivistas).

A marca do construtivismo no Brasil é a linguagem sintética e a concisão. Em teoria, o construtivismo, dos idos anos 20 do socialismo soviético, interessava-se pelas formas simples. “Acreditavam que os edifícios e objetos deviam libertar-se das excrescências ornamentais e das algemas acumuladas do passado. Advogavam o edifício nu, a pureza inerente nas formas elementares”[vi].

“Quando a forma encontra a beleza, nela se justifica”
Oscar Niemeyer

Duas palavras potentes foram seqüestrados pelos teóricos construtivistas pra demonstrar seu processo criativo dialético: tectônico e fatura, resultando sua síntese em realidade construtiva. Tectônico: a idéia total, a concepção fundamental baseada no uso social e em materiais convenientes – a fusão de conteúdo e forma; fatura: a realização das propensões naturais dos próprios materiais, suas condições peculiares durante a fabricação, sua transformação.”[vii].

O ideário construtivista do homem-máquina, do designer criativo, do artista-engenheiro teve dissidência. Naum Gabo e Kandinsky apóiam que os materiais – no caso as linhas, as formas e as cores – possuem próprios significados expressivos independentes da natureza. E que seu conteúdo não se baseia diretamente no mundo externo, mas resulta dos fenômenos psicológicos que são as emoções humanas. A flexibilização de uma corrente que se identificava mais com a filosofia, do que com a psicologia.

João no seu tempo e avante

Gomide também ensinou que nenhum instrumento de sopro é capaz de formar um acorde. O violão, como um grande instrumento harmônico, sim. João trabalha esse material até unir forma e conteúdo. Sua subjetividade, sem dúvida, contribui na significação de cada batida e cada palavra entoada. A união dos instrumentos voz e violão formam, portanto, o processo criativo dialético (a fatura e o tectônico). E, como as linhas de Niemeyer, são pura filosofia.

Ao amigo Gomide e à Nanci Valadares

[i] Bar Belmiro, Conde de Irajá com Visconde de Caravelas, Botafogo. Boa música às segundas e terças, do samba à bossa-nova, aprecie com moderação.
[ii] Jean-Phillipe Rameau (1683-1764), compositor e teórico francês do Classicismo, autor de “Traité de l’harmonie réduite à sés príncipes naturels” de 1722.

[iii] Gabriel Urbain Fauré (1845-1924), compositor e pianista francês, transformou os fundamentos de harmonia lecionados até então. Suas composições eram pautadas na estrutura harmônica de Gustave Lefèvre, seu professor na l'École Niedermeyer e autor de “Traité d’harmonie” (1889).
[iv] NAVES, Santuza Cambraia. “Da Bossa Nova à Tropicália”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
[v] Site Clube do Tom http://www.jobim.com.br/index.html
[vi] SCHARF, Aaron “Construtivismo” In “Conceitos da Arte Moderna”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
[vii] Idem