“O rádio de pilha, o fogão jacaré.
A marmita, o domingo, o bar.
Onde tantos iguais se reúnem
E contando mentiras pra poder suportar.
Ai, são pais-de-santo, paus-de-arara, são passistas.
São flagelados, são pingentes, balconistas”
João Bosco e Aldir Blanc
O episódio desse capítulo conta a história de Terezinha da Silva1, uma dona-de-casa, da cidade alagoana de Arapiraca. Um dia, cansada de “pilotar o fogão”, ela resolveu que seria motorista de caminhão:
O meu marido era caminhoneiro quando eu casei com ele, né? E ele começou a dirigir caminhão e eu em casa cuidando dos meninos...
Enquanto está cozinhado, Denise/Terezinha resolve mostrar para o marido a insatisfação em ser dona-de-casa:
Denise/Terezinha: (cozinhando algo) Meu filho!
Marido: Hum?
Denise/Terezinha: Sabe que eu to cansada de pilotar esse fogão.
Marido: Sei...
Denise/Terezinha: Eu tava pensando, aqui, em pilotar uma outra coisa.
Marido: O tanque de lavar roupa?
Denise/Terezinha: Não, o teu caminhão.
Marido: (assustado) O meu caminhão?
Essa história narra a ação de Terezinha da Silva, uma dona-de-casa que questiona a imagem que seu marido possui de sua função no espaço organizado no qual ela experimenta e compreende o mundo. Esse mundo situa-se no ambiente das relações familiares e privadas.
O episódio escolhido materializa a tônica dominante que rege as narrativas de Retrato Falado: são histórias construídas a partir da relação entre o mundo cotidiano, ou seja, no
ambiente em que a ação de Terezinha se desenvolve, e o mundo midiático, do qual a televisão faz parte.
Dessa forma, Retrato Falado opera com dois sistemas organizacionais para construir o seu argumento. De um lado, o mundo televisivo com sua maneira própria de contar, capaz de criar sistemas simbólicos que se constituem a partir da conformação de seus produtos em grades de programação, gêneros e formatos, permitindo a compreensão por parte do público. Do outro, o cotidiano que, por sua vez, também instaura modos de apreensão, acomodação e significação. Isto é, operam dentro de sistemas organizadores, através dos quais o mundo passa a ser atribuído de valores, hábitos e vínculos capazes de criar sentido aos participantes, no dizer de Certeau, que ali habitam.
Nesse capítulo trataremos do que recorrentemente chamamos de expectativas de ficcionalidade e de realidade. Partimos do pressuposto que as marcas do melodrama e do documentário são utilizadas em Retrato Falado como estratégia de representação e de legitimação do cotidiano.
Assim, as histórias do quadro se alimentam da experiência diária, deslocando-a para a realidade da TV, com seus modos operacionais. Mas esse processo de apropriação do mundo midiático se complexifica, na medida em que retorna ao cotidiano, fazendo parte do mundo, ajudando a ordená-lo, questioná-lo e, também, compartilhá-lo.
Entendemos essa complexificação a partir do processo histórico pelo qual a televisão não apenas tematizou, mas também se inseriu no dia-a-dia do público, criando modos de percepção e significação. Quando Retrato Falado se apropria de experiências cotidianas, dessas já fazem parte o ambiente televisivo - os seus modos de falar.
A comicidade em Retrato Falado se constitui, portanto, a partir de marcas textuais que utilizam expectativas já reconhecidas pelo público, por fazerem parte do seu mundo. São elas as expectativas de ficcionalidade e de realidade. Cabe-nos, portanto, apresentar como narrativamente a idéia de cotidiano se expressa na televisão criando uma representação sobre as maneiras de ser e fazer dos sujeitos comuns.
Entendemos que os produtos televisivos foram compartimentados em categorias. Se por um lado, há os denominados gêneros ficcionais, por outro se tem uma cadeia de programas visando à informação e para isso a “realidade” torna-se a matéria-prima dessas narrativas.
Para Araújo, o enquadramento entre “ficcional” e “real” são distinções existentes desde o surgimento da televisão. Nesse sentido, a televisão era entendida por essa dupla possibilidade: a de poder “levar para a casa” do público o que acontecia, ao mesmo tempo em que possuía a capacidade de “criar mundos, personagens, cenários, tramas” (Araújo: 2006, 54).
O autor argumenta que a partir desse enquadramento há uma segunda distinção revelada na separação entre os programas de entretenimento e de informação. Podemos dizer que já havia na grade de programação desde o início das transmissões a tentativa de criar diferentes expectativas .
Assim, a narrativa melodramática (entre outras) foi tomada como empréstimo pela televisão na formação de programas ficcionais, ao mesmo tempo em que o documentário tornou-se matriz dos chamados programas informativos, produzindo no público dois lugares de entendimento aparentemente opostos, e que nomeamos como expectativas de realidade e de ficcionalidade.
É preciso deixar claro que o gênero melodrama em sua historicidade já assumia no teatro e, portanto, antes de fazer parte do fluxo televisual, o lugar de narrativa ficcional (ele já nasceu nesse lugar). Para além, o gênero é uma das categorias formadoras dos chamados programas de entretenimento, mas não é a única.
Retrato Falado, enquanto produto ficcional, é formado pelo diálogo entre as marcas do melodrama, do documentário e do riso da praça pública cuja finalidade é a criação de um programa de humor, como já enfatizamos. Nesse capítulo queremos localizar o uso das marcas do melodrama e do documentário como modos de encenação do mundo midiático na narrativa do quadro. E nessa narrativa, como veremos, o cotidiano tem lugar preponderante.
É a partir do cotidiano que a narrativa do Retrato articula a estratégia de presença, particularizando as experiências vividas e revelando vestígios de um modo de contar anterior: o da telenovela brasileira.
Portanto, tornar o cotidiano categoria e rastrear a forma como tem sido configurado em Retrato Falado significa analisar os usos pelos quais cada matriz criou um modo de operá-lo. Para além, a fabulação do cotidiano no quadro é conseqüência de um jogo dialógico entre essas marcas, presentes anteriormente no mundo da telenovela brasileira. O ponto de partida para a análise não serão esses gêneros em separado, mas as conseqüências dessa relação que produziu um universo contado a partir do verossímil e que denominamos de fábula cômica do cotidiano.
É pela matriz da telenovela que faremos a contextualização da categoria cotidiano na televisão. Nesse sentido, afirmamos que as modificações encontradas na narrativa da telenovela, a partir da década de 1970, com a chamada proposta realista, foram parte de um processo narrativo que legou a junção entre as marcas do melodrama e do documentário em Retrato Falado, gerando uma espécie de teia narrativa que se vincula a outros programas televisivos e a própria telenovela, como veremos.
Citamos nas entrelinhas da introdução desse capítulo, e que aprofundaremos no seu decorrer, a importância do cotidiano na construção das narrativas televisivas. No entanto, entendemos que este se torna a temática dominante da televisão brasileira a partir da década de 1990, contexto do qual o Retrato Falado faz parte. Assim, o cotidiano nesse trabalho é visto como categoria que representa a mudança da própria produção do humor na televisão brasileira, como relatamos nos dois capítulos anteriores2.
Por que, então, delegar à categoria de cotidiano o elemento de ruptura entre as formas de contar da televisão, a partir da década de 1990, se este sempre foi o seu ponto de partida? A essa pergunta, cabe uma outra: o que mudou?
Partimos do pressuposto que, a partir da década de 1990, o sujeito comum toma um lugar diferenciado nas narrativas televisivas: insere-se nelas por meio do testemunho. Sejam em programas de auditório como Domingão do Faustão (TV Globo), A hora da verdade (TV Bandeirantes), Programa do Ratinho (SBT), sejam em telenovelas como Metamorfoses (TV Record), Explode Coração (TV Globo), sejam em programas de humor como Retrato Falado (TV Globo), Muvuca (TV Globo), Sociedade Anônima (TV Globo).
Se por um lado temos o surgimento de uma série de programas denominados de “popularescos” que se constituem a partir do cotidiano e do sujeito comum e cujo público alvo são as classes C, D e E, como nos mostra Vera França (2006) 3, por outro, há, também, uma reapropriação do tema por parte de produtores, atores e diretores saídos das universidades, como já abordamos no capítulo 1.
Criando uma espécie de alargamento da análise de França para o contexto de Retrato Falado, o que modifica, em primeiro lugar, é a temática. O sujeito comum torna-se referência de programas cujo público-alvo não são os grupos populares, mas o telespectador de maneira abrangente, representando uma imagem da “família” brasileira.
Como já dissemos, esses programas são criados por um grupo intelectualizado, que representa uma elite dentro da televisão nacional e, nesse sentido, são considerados de maneira positiva pela crítica. São qualificados, por sua origem, como programas de “qualidade”, o que embute evidentemente um preconceito em relação à estética contrária. Percebemos, dessa maneira, que houve a valorização da vida cotidiana e do sujeito comum em várias esferas da produção televisiva.
Há que ressaltar, igualmente, a mudança ocorrida na maneira de contar desses programas que incorporaram marcas do documentário com a finalidade de legitimação da narrativa ficcional. O depoimento foi, então, a forma escolhida de representação do sujeito comum no fluxo televisivo, diferentemente de outros momentos históricos.
Se entendemos Retrato Falado por meio de permanências, espécies de vestígios da própria história da televisão nacional, por outro, nessas mesmas permanências observam-se rupturas, que faz do quadro um programa singular. Portanto, atrelado às modificações citadas acima, procuramos evidenciar a sua aproximação com a telenovela que, no nosso entendimento, abriu caminho para essa tendência da televisão brasileira contemporânea4.
Para empreender esta análise é preciso, primeiramente, entender como teoricamente consideramos o cotidiano e o sujeito comum. Tomamos como referência, as conceituações de Michel De Certeau. Esse é o caminho que exploraremos a partir de agora.
3.1. O mundo cotidiano
Iniciamos este capítulo com uma suposição aparentemente simples: o cotidiano é o mundo diário através do qual materializamos nossas ações e, portanto, esse parece ser o lugar em que a “realidade” se constitui como princípio legitimador e regularizador. Entendemos que o que chamamos “realidade” se concretiza por meio de práticas, mas também, a partir do contexto no qual nos inserimos. Ou seja, estamos imersos em um “real existente” onde nossas atuações se corporificam, como uma espécie de jogo relacional em que o fazer diário depende e legitima uma configuração de mundo real.
Tomamos essa suposição inicial como um dado, pois, entendemos que mesmo existindo outros lugares e, portanto, realidades também díspares, que compartilhamos com esses “outros” todos, somos antes de tudo sujeitos comuns inseridos primeiramente na vida cotidiana. Assim, muitas vezes cercamos o discurso de palavras diretas como “no meu entender”, “na minha realidade” para suprir de “verdades” os nossos argumentos e, assim, denunciamos que as operações de sentido se constituem pelo lugar no mundo em que estamos inseridos. Esse lugar, como dissemos, é antes de qualquer outro, a vida.
Berger e Luckmann (2002) afirmam que a realidade cotidiana se autoriza como a mais real por sua “posição privilegiada”. Assim, a experiência da vida cotidiana existe em nós sob forma irrefletida e se configura como uma organização de modos de ação, um saber que surge por meios de práticas pré-existentes e que são continuamente reatualizadas (o que Bourdieu vai qualificar como habitus).
Nesse sentido, o elo que permite a continuidade e determina a configuração de ações ordenadas, como cozinhar, trabalhar ou mesmo conversar, no qual a vida cotidiana ganha significado, é a linguagem. Esse mundo, portanto, se apresenta imerso em uma “teia de relações humanas”, que são estruturadas pela linguagem. “A linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significações”. (Berger e Luckmann, 2002: 38-39).
É a partir dessa organização de ações em um dado momento e lugar que Certeau constrói seu argumento. Entender o mundo para ele significa por em questão essa teia de relações que é permanentemente configurada nas práticas diárias. Ele elabora, então, um primeiro pressuposto: o cotidiano é um lugar de saber.
O autor, dessa forma, parte da premissa, que o mundo é regido por duas operações simbólicas: uma situada em um espaço estratégico que institui as “leis maiores”, capazes de dar sentido e organizar o nosso dia-a-dia. Operações, essas, que são marcadas por uma racionalidade que explica. É um tipo de processo que se articula no deslocamento efetuado pela relação entre fazer parte desse mundo e sair dele (olhar de cima), para tentar compreendê-lo melhor.
Assim o autor qualifica o discurso do perito e do filósofo, sujeitos que “saem” da realidade cotidiana para falar sobre ela. À medida que se distanciam, ganham autoridade sobre o seu lugar de fala. Nesse sentido, é a partir desse deslocamento que esses olhares ganham “ares” de universalidade, entendidos como significantes verdades sobre o mundo5.
O primeiro questionamento do autor diz respeito ao próprio lugar de fala em que estão situados os discursos das ciências6. Certeau se cerca teoricamente dos estudos sobre a linguagem, precisamente a análise efetuada por Wittgestein, para compreender que não há como o discurso científico ser originado de “fora”, pois “o perito e o filósofo” são sujeitos ordinários, habitantes desse mundo comum. Portanto, mesmo sendo percebidos como “estranhos” que ali explicam, esses discursos são originados de “dentro”: “Em suma não existe saída, e apenas o fato de se ser um estranho dentro mas sem fora, e na linguagem ordinária, resta lançar-se contra os seus limites” (Certeau, 1994: 73).
No dizer de Berger e Luckmann, é uma espécie de campo de outras realidades em comparação ao da realidade cotidiana, que são entendidos dentro de uma significação finita, ou seja, como “enclaves da realidade dominante marcada por significados e modos de experiência delimitados”. Dessa maneira, a realidade cotidiana – dominante – cerca a todos por todos os lados (Berger e Luckmann, 2002: 43).
Esses discursos, portanto, entendidos na sua generalidade são verdades que se constituem a partir de um deslocamento ilusório pelo qual se legitimam os sujeitos do campo científico e que se tornam um lugar próprio. Daí, em contrapartida, o conceito de homem ordinário se referir ao que o autor vai chamar de “extravio da escrita fora do seu lugar próprio” (Certeau, 1994: 61).
Dito de outra maneira, aquele que não possui nome, o “ninguém” ou “todo mundo” serve como pano de fundo para as totalizações afirmativas de um lugar que é próprio – o campo científico, por exemplo. Esse homem ordinário a qual se refere Certeau é “nome que trai a ausência de nome”, ou seja, o deslocamento do próprio para o anônimo, capaz de fornecer “o meio de generalizar um saber particular e garantir por toda a história a sua validade” (Certeau, 1994: 62).
Esse homem ordinário se constitui por aquilo que não é: o sujeito esclarecido versus o sujeito comum. Assim, é na diferenciação entre esses dois sujeitos - o comum e o que fala sobre o primeiro, entendendo que este último só pode ser um estranho que habita o cotidiano, não estando fora dele - que Certeau toma como ponto de partida, não o discurso científico, mas o seu retorno ao mundo comum: “como o mar volta a encher os buracos da praia e pode reorganizar o lugar de onde se produz o discurso” (Certeau: 1994: 64).
Para tal, o autor estabelece a segunda operação de sentido que habita a vida diária. E que, para ele, serve como uma espécie de “antidisciplina” capaz de dar conta das inúmeras ações invisíveis que se formula a partir de uma reapropriação por parte desses sujeitos comuns de uma ordem criada em um lugar próprio. É, portanto, desse ponto de partida que o autor instaura o seu segundo argumento: o cotidiano é um lugar que se inventa a todo instante nas maneiras de fazer com desse sujeitos comuns. Fazer com que, para ele, se inscreve na ordem das táticas7.
Usamos dois conceitos de Certeau, estratégias e táticas, para compreender a arquitetura desse mundo cotidiano. Além disso, definimos o sujeito comum. Cabe-nos então responder a pergunta que aproxima a concepção de Certeau de nosso objeto: quem são esses sujeitos comuns em Retrato Falado?
O Retrato e o sujeito ordinário
O sujeito comum no quadro se constitui pela oposição entre a própria designação do sujeito habitante do mundo midiático. Dito de outra maneira, o ordinário em Retrato Falado só pode ser definido por aquilo que ele não é um lugar próprio, a mídia. Nesse sentido, ele se constitui como espécie de avesso ao homem midiático simbolizado pelas celebridades.
Dessa maneira, concordamos com Guimarães (2006) quando diz que a proposta desses programas, e, particularmente no caso do nosso objeto, é construir uma celebração do ordinário em oposição ao sujeito habitante do mundo midiático, ou nas palavras do autor: transformar o “ordinário em extraordinário”. No quadro abaixo criamos uma espécie de arquitetura desse sujeito ordinário, a partir dos quatro episódios analisados nessa dissertação.
QUADRO III
Retrato falado e o Sujeito Ordinário
Episódio Personagem Caracterização Veiculação
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos Zuca Dona de casa que tem o cabelo crespo, deseja cortar o cabelo bem curto e o marido não permite. 29/09/2002
Do canavial para as pistas Zeferina Baldaia Cortadora de cana que se transforma em corredora profissional e ganha a corrida de São Silvestre 17/02/2003
Dente por Dente ou jaqueta por jaqueta Mariza da Silva Dona de casa que perde o dente pivô no dia do casamento da filha. 31/08/2003
A verdadeira carga pesada Terezinha da Silva Dona de casa que se transforma em caminhoneira. 25/08/2002
Fonte: Fraga, Denise. Retrato Falado, histórias fantásticas da vida real, Rio de Janeiro: Globo, 2005.
Assim, o sujeito comum em Retrato Falado é o habitante do mundo cotidiano com suas ações diárias que são revividas na narrativa do quadro, como uma espécie de refiguração, no dizer de Ricoeur (1994), desse mundo “mais real” no meio televisivo. Dessa forma, eles se constituem pelo alargamento da “família brasileira”. São histórias que giram em torno de mulheres em suas relações com o tio, o vizinho, o marido, o melhor amigo e a própria televisão dentro de um contexto que lhes são familiares (o mundo privado), a partir de um permanente diálogo entre esses dois lugares. Para além, essas histórias reforçam os laços afetivos pelas quais essas relações cotidianas se constituem.
Nesse sentido, a maneira de narrar do quadro utiliza esses deslocamentos quando traz para a narrativa o testemunho dessas mulheres, como o de Terezinha (narradora da história aqui analisada), ao mesmo tempo em que a performance de Denise Fraga se constitui na inversão das mesmas narrativas, a partir do excesso, criando um efeito de comicidade8.
Só podemos entender o testemunho e a performance de Denise Fraga a partir de um diálogo entre essas “duas mulheres”. Nesse sentido, é o testemunho que traz para a narrativa de Retrato Falado a expectativa de presença desse mundo diário. Além disso, o testemunho é estrategicamente colocado em cena para tornar a atuação da atriz mais próxima da vida cotidiana, ou seja, Denise Fraga sai do seu papel de atriz (sujeito de um lugar próprio), para tornar-se uma pessoa comum. É o testemunho que dá sentido a essa expectativa de real nas histórias e que são alargadas pelas marcas de realidade inseridas na dramatização.
Por outro lado, o desempenho da atriz legitima a configuração de um lugar próprio na narrativa: o mundo midiático. É também este que mostra a complexidade que se instaura quando os modos de representação do fluxo televisual passam a fazer parte do mundo cotidiano. Nesse caso, a atuação de Denise Fraga simboliza as marcas textuais do meio televisivo, reconhecidas pelo público, e enfatiza a presença dessas marcas no próprio testemunho.
Dito de outra maneira: as marcas textuais pelas quais a televisão constrói a sua realidade são reapropriadas pelos sujeitos comuns, tendo em vista que o mundo midiático, como dissemos no início desse capítulo, volta para a vida diária. Essa operação em Retrato Falado se articula pela presença das marcas do melodrama9, como uma espécie de imaginação que também organiza o discurso efetuado pelo testemunho, sempre constituído sob forma narrativizante, na acepção de Ricoeur 10.
O diálogo entre essas duas vozes (o testemunho e o desempenho de Denise Fraga) indica uma permanente entrada e saída desses dois mundos, revelando a complexidade que se instaura entre a relação das realidades televisivas e cotidianas em Retrato Falado.
Após definir o que chamamos de sujeito comum no quadro, cabe-nos, agora, analisar como esses sujeitos “habitam” o mundo cotidiano da telenovela, que no nosso entender permanecem em Retrato Falado.
3.2. O mundo cotidiano da telenovela
O gênero telenovela está na televisão nacional praticamente desde o seu surgimento. Oriunda das radionovelas, as primeiras narrativas novelescas foram releituras de sucessos já transmitidos pela rádio. A televisão brasileira tinha apenas um ano de existência, quando Walter Fóster, dirigiu, atuou e escreveu a primeira novela nacional: Sua Vida me Pertence (1951). Ainda sem ser diária, ia ao ar duas vezes por semana, às vinte horas na TV Tupi.
Traçaremos um pequeno histórico de como a telenovela se tornou um dos programas de maior sucesso da TV brasileira, criando uma narrativa que influenciou outros programas, como o Retrato Falado. Além disso, é preciso levar em conta a importância do gênero no processo de industrialização da televisão nacional, iniciado na década de 1960 e consolidado na década de 1970, pela TV Globo.
Cabe analisar a mudança que ocorreu no formato a partir do momento em que as telenovelas passaram por um processo de abrasileiramento de sua temática e linguagem, criadas por autores brasileiros. Esse modo se consolidou em oposição ao tipo de produção desenvolvida na América Latina e ficou conhecida como proposta realista11.
É a partir dessa readaptação de linguagem que, segundo Esther Hambúrguer (2006), a telenovela se consolida como um dos produtos mais rentáveis, pois, atingiu grandes audiências, conhecendo o seu período de apogeu nas décadas de 1970 e 1980. O surgimento da proposta realista, a nosso ver, é ponto de partida para compreendermos a formação de uma estrutura narrativa que se pauta pelo alojamento do sujeito comum na ficção televisiva, embaralhando as barreiras entre mundo midiático e cotidiano.
Embora a primeira transmissão tenha ocorrido nos primeiros anos de surgimento da televisão12, a telenovela só se populariza a partir da década de 1960. A dramaturgia televisiva na primeira década da TV brasileira se materializava por meio dos teleteatros, espécie de teatros filmados baseados em peças de autores consagrados. Citamos como referência os programas Grande Teatro Tupi (1951-1965), TV Vanguarda (1952-1967, TV Tupi ) e TV de Comédia (1957-1967, TV Tupi ) (Alencar, 2004).
Esse período ficou conhecido, segundo Borelli e Ramos, como a época áurea do teleteatro. Foi também marcado pela inexperiência tanto dos realizadores, quanto dos empresários diante do novo meio, ao mesmo tempo em que o próprio público ainda estava por se formar, tendo em vista que poucas pessoas possuíam o aparelho de televisão (Borelli e Ramos: 1989).
Foi a partir da década de 1960 que a telenovela, ainda de forma experimental, passou a ser produzida com maior freqüência. Segundo os autores, esse foi o período inicial de implementação (por parte dos empresários das emissoras) de um sistema organizacional em processo de consolidação da TV como indústria, fato que só aconteceria na década seguinte.
Há que considerar que, nesse momento, surgiram os primeiros sistemas de redes televisivas, expandindo a programação para fora do eixo Rio-São Paulo, ao mesmo tempo em que houve o aumento da audiência com a ampliação significativa da venda de receptores13.
Assim, essa segunda década da história da televisão no Brasil registrou o início de uma produção racionalizada, através de um projeto econômico e cultural que começou a estabelecer determinadas regras de funcionamento das emissoras. Se nos primeiros dez anos foi o regime de experimentação que estruturou o seu funcionamento, tendo em vista que o meio ainda era novidade, é a partir de 1960 que, segundo Borelli e Ramos, “a televisão começa realmente a se implantar como um veículo de massa”, implicando em alteração na forma de produção e investimento do meio14 (Borelli e Ramos: 1989, 56).
Para os autores, a primeira manifestação dessa “visão empresarial” foi marcada pelo gerenciamento do Grupo Simonsen, à frente da TV Excelsior (1959). Foi nesse momento que se pensou em estratégias para a formação do público televisivo, através de campanhas publicitárias, criação de logomarcas e também de uma inicial organização do fluxo televisual - formatação de uma programação horizontal (ou seja, na criação de programas diários) e vertical (na fabricação de uma linha de programas subseqüentes) que pudessem assegurar a audiência .
No dizer de Daniel Filho, “a idéia da Excelsior era fazer uma network, uma rede, produzindo programas para todas elas”. Nomes como Chico Anysio, Carlos Manga, o próprio Daniel Filho e Boni foram contratados pela emissora que oferecia melhores salários. Diz ele: “eu que faturava cerca de 70 mil cruzeiros por mês, passei a receber um salário de um milhão e duzentos em 1963” (Filho: 2001, 22-23).
Essa nova fórmula implantada pela TV Excelsior foi responsável pela regulamentação do sistema de contratação dos artistas que, até aquele momento, era pautada por uma espécie de acordo amigável entre as emissoras para que uma não contratasse o artista que estava atuando na outra. É ainda nesse período que se iniciou a preocupação por parte dos empresários com a profissionalização, criando departamentos de produção tendo em vista a divisão de trabalho, a partir da especialização das profissões que o meio necessitava (Borelli e Ramos, 1989).
Foi, portanto, nessa década que o meio começou a se estruturar com mentalidade empresarial, modificando o contexto de produção, visando formar uma audiência televisiva, capaz de vender a idéia de que a televisão era forte instrumento para o investimento publicitário: “ela (a televisão) se apresenta para o público e para o mercado publicitário como uma marca, uma griffe”, fazendo da emissora um hábito na vida cotidiana dos espectadores brasileiros (Idem, 57).
A telenovela aparece nesse processo como estratégia para garantir público, já que fazia muito sucesso no rádio. Nesse sentido, o então diretor de programação da TV Excelsior15, Edson Leite, em 1963, importa da Argentina, 2-5499 Ocupado16, a primeira telenovela diária do país.
Essas transformações e a própria escolha da telenovela em detrimento do teleteatro se deram à medida que o gênero adquiria popularidade. A novela que já havia obtido sucesso nas emissoras de rádios passou a ser fundamental para a construção da audiência e quanto mais a televisão se estruturava, mais a telenovela se consolidava como um dos programas mais rentáveis, resultando em forte produto de concorrência entre as emissoras17.
Essa popularidade resultou no enfraquecimento do teleteatro que paulatinamente foi sendo substituído. Nesse sentido, é preciso deixar claro que essa alteração foi também resultado de uma demanda do público, como sugerem Borelli e Ramos: “a substituição do teleteatro para a telenovela caminha, portanto paralelamente à aceitação do novo gênero dramático pelo público”. (Borelli e Ramos: 1989, 64).
Em 26 de abril 1965, mesmo dia de sua inauguração, a TV Globo, lançou a sua primeira experiência em dramaturgia: Rua da Matriz, um seriado com histórias contadas em cinco capítulos, relativas aos moradores da fictícia rua da Matriz. Nesse mesmo ano, a autora cubana Glória Magadan assumiu a supervisão de novelas, criando uma espécie de era que durou até 1969 e foi inaugurada pela transmissão de Paixão de Outono (1966). (Alencar: 2004)
As duas primeiras décadas da TV brasileira foram marcadas, portanto, por um regime de experimentação que tornou evidente a inexperiência dos produtores que testavam fórmulas e buscavam as primeiras coordenadas no caminho de implantação de uma indústria televisiva. A telenovela, assim como o veículo, ainda procurava um padrão organizacional que fosse capaz de equilibrar a relação entre gastos e lucros. Experimentavam formatos quanto aos horários de exibição, à quantidade de capítulos e ao público-alvo. Há que considerar ainda que a telenovela que se assistia naquele período era caracterizada pela importação e adaptação de textos latinos, circunstância que só se modifica com o aparecimento da TV Globo (Borelli e Ramos: 1989).
Entre risos e lágrimas: a matriz melodramática
O modelo inicialmente adotado pela telenovela seguiu o caminho aberto pelas radionovelas, como sugere Ortiz (1989): um tipo de drama centrado em histórias de amor que remetem às tramas folhetinescas do século XIX. Duas características são importantes na sua constituição: uma diz respeito à forma de produção adotada e a outra à influência da matriz melodramática como estrutura narrativa dos textos. Há que considerar ainda que esse modelo engendrava rupturas devido ao artifício da imagem, gerando uma readaptação dessas tramas para o contexto televisivo.
Falar de telenovela, em princípio, significa falar de uma narrativa serializada18 cuja gênese remonta aos romances de folhetim. Além disso, como aponta Ortiz, é preciso perceber como a esse gênero popular foi somado o modo de produção ligado ao padrão norte-americano de dramaturgia que originou a radionovela e, posteriormente, a telenovela.
O modelo de produção tinha como referência as Soap Operas, espécies de dramaturgia radiofônicas, voltadas para o público feminino, com a finalidade de aumentar a venda dos produtos como sabão e dentifrício, no período de recessão econômica americana na década de 1930.
Para Ortiz, as Soap Operas surgiram a partir de uma estrutura comercial resultante da parceria entre as emissoras de rádio e as agências de publicidade que detinham o domínio da produção, sendo responsáveis pela criação dos textos e contratação dos autores, atores, produtores e diretores. As Soap Operas se estruturavam pela longa duração de suas histórias chegando a permanecer durante anos no ar, modelo que foi copiado pelas telenovelas americanas. Citamos como exemplo Days of Our Lives19, que em 2005 completou 40 anos de transmissão. Diz ele: “O que existe é uma comunidade de personagens fixados em determinado lugar, vivendo diferentes dramas e ações diversificadas” (Ortiz: 1989, 19).
A estrutura da telenovela brasileira foi influenciada pelo estilo cubano de radionovela que uniu o ritmo de produção oriundo das Soap Operas, mas delimitou suas tramas a um tempo específico de duração e às temáticas amorosas formalizadas pelo par romântico. As histórias eram desenvolvidas através de um núcleo básico que conduzia o telespectador às ações dramáticas que desaguavam invariavelmente em um final feliz.
A fórmula inicial se constituiu pela influência dos profissionais de rádio que atuavam nas emissoras televisivas. Com pouca experiência no novo veículo, a radionovela tornou-se a melhor estratégia para chamar a atenção das empresas para as possibilidades de investimento publicitário, pois atraía a audiência com um texto que já havia caído no gosto popular. Dessa maneira, as narrativas cujas tramas eram baseadas em melodramas clássicos passaram a dominar o mercado de produção de telenovelas daquele período20. Esses textos eram em sua maioria importados da América Latina, principalmente de Cuba e da Argentina.
O melodrama, portanto, foi a matriz que organizou, inicialmente, a forma de contar da telenovela. Nesse sentido, pensar a trama novelística significa colocar em questão a maneira como a vida privada foi sendo configurada através de uma estrutura que se constituiu no adensamento de uma moral pelo viés sentimental.
Como mostram Bentley (1981), Xavier (2003) e Barbero (2003), o excesso é o ponto de partida para compreendermos a narrativa melodramática. É a partir da estrutura centralizada na exacerbação do sentimental que o gênero deixa transparecer estratégias de organização do mundo moderno, instauradas por uma pedagogia moralizante.
Para Xavier, o melodrama clássico tinha como proposta “tornar visível a moral cristã, às vezes ativando os paradigmas de renúncia e sacrifício” em função da virtude. Nele, encontra-se: a vitória, o bem – corporificado pela noção de virtude-, “o triunfo da virtude”, “o infortúnio da vítima inocente” e a “trilha sonora melodiosa” (Xavier, 2003: 93).
Os personagens dessa narrativa são constituídos a partir de um jogo dicotômico para que não deixem dúvidas no público: a figura da mocinha é sempre virgem, inocente e pura; já a vilã é sempre fatal, sedutora e sem escrúpulos. As marcas do herói e do vilão são traduzidas no corpo, através do que Mariana Baltar vai chamar de “simbolização exacerbada”, ou seja, na construção de metáforas a partir de uma “obviedade”. Estes são os fundamentos de um modo de contar que quer deixar tudo à vista do espectador (Baltar: 2005, 01). “O vilão é antes de tudo nos bigodes na postura insinuante, a heroína é inocente na conformação do rosto e na contenção do gesto, o herói destila virtude no asseio e na presença modesta e respeitosa” (Xavier: 2003, 94).
Podemos dizer que as primeiras telenovelas tinham maior aproximação com a narrativa melodramática clássica. Os personagens, menos maleáveis, expressavam os ideais de pureza e maldade pela eloqüência da interpretação, pela caracterização do corpo e por um texto cheio de artifícios convidativos às lágrimas e à indignação. Esse foi o tipo de estrutura que se tornou hegemônica nas duas primeiras décadas.
As primeiras telenovelas nacionais descreviam histórias que se passavam em lugares fantasiosos, ocorridas em tempos distantes e giravam em torno de temáticas amorosas. Seus personagens, de nomes estrangeiros, se caracterizavam pela oposição ao tipo brasileiro e possuíam, no dizer de Hambúrguer (op. cit), figurinos suntuosos e um linguajar formal.
É preciso deixar claro, que embora a narrativa melodramática seja uma matriz fundamental na formação da telenovela, essa não pode ser entendida como simples desdobramento. Na nota 17, apontamos um outro tipo de telenovela produzida no país. Afirmamos que a telenovela é um gênero narrativo que se constituiu pela mistura de vários gêneros da matriz popular, entre eles, o melodrama. Mas pensar a telenovela como sinônimo de melodrama significa apagar a sua historicidade e simplificar a complexidade que envolve a sua formação.
Desse modo, entendemos a importância da narrativa melodramática como uma espécie de arquitetura pela qual a telenovela se constituiu, mas que se somou a outras matrizes, como o humor, a literatura policial, a ironia e também os romances literários à medida que se consolidava como um dos produtos mais rentáveis da televisão brasileira.
Nesse sentido o conceito de imaginação melodramática, proferido por Peter Brooks21 (1995), vai ser utilizado nessa dissertação como suporte para a análise de um tipo de narrativa que não pode ser localizada apenas como melodramática, caso da telenovela, mas que se constitui pela presença dessa imaginação, como uma espécie de um alargamento do conceito do gênero. É dessa maneira que apontamos a diferença entre o melodrama canônico e o que surgiu posteriormente, caso da telenovela. Para além, é ainda, a partir desse pressuposto que indicaremos as diferenciações ocorridas na maneiras de contar da telenovela a partir de 1970, com o surgimento da proposta realista.
Para o autor, a imaginação melodramática atravessa as diferentes narrativas da modernidade que necessitam de outra forma de organização. Desse modo, essa imaginação efetua-se como modo de narrar às complexidades existentes no mundo moderno, através dos modos de excesso.
O excesso aparece como espaço estratégico para a explicação de um mundo que não consegue mais ser definido dentro de uma lógica sagrada, baseada em princípios religiosos. Revela modos de proceder que restituem a estabilidade em um mundo desacralizado. “O melodrama formaliza um imaginário que busca dar corpo à moral, torná-la visível (grifo do autor), quando ela parece ter perdido seus alicerces” (Xavier: 2003, 91).
A presença dessa imaginação na dramaturgia televisiva se configura através do adensamento da moral que aparece como organizadora do mundo privado e de concepção dramática, inspirando comoção e piedade. São histórias que se constituem pelos laços de afetividade e se legitimam através da relação de cumplicidade entre texto e público situadas pelas falas do coração.
Essa imaginação aparece na telenovela através do par amoroso, temática que serve como fio condutor para a exteriorização dos dramas privados, ao mesmo tempo em que privatiza as questões públicas. É pelo caminho do amor que temas sociais são desenvolvidos. Através dessas marcas reconhecidas pelo espectador, a telenovela, no dizer de Hambúrguer, dilui as fronteiras entre “os domínios do público e do privado”, resumindo situações complexas em “figuras e tramas pontuais”, transformando “dramas pessoais e pontuais” em ações passíveis de serem vividas por qualquer sujeito (Hambúrguer: 2006, 470).
A cena de Camila cortando o cabelo em Laços de Família22 (Carolina Dieckman, TV Globo, 2000/2001) reúne os elementos que apontam para a presença de uma imaginação melodramática na narrativa, montada em uma seqüência de cortes que vai do plano médio ao close up, com a atriz olhando para a câmera. Sem diálogos, assistimos ao choro que aumenta à medida que a personagem vai perdendo o cabelo, em função da leucemia. Todo esse momento é embalado pela música tema da personagem Love by Grace (Amor pelo perdão).
Esse exemplo indica marcas de uma construção narrativa pautada pelo excesso do sentimental, pois, quando o enquadramento da câmera explora apenas a personagem de Camila, em um movimento que passa do plano médio ao close up, toma o corte de cabelo da personagem como símbolo do seu infortúnio, que nesse caso é uma doença. Essa imagem é acentuada pelo uso da música temática e pelo choro da personagem.
Esses elementos caracterizam a intenção da novela em construir um pacto sentimental com o público que passa a torcer pela felicidade de Camila. É, dessa maneira, que a imaginação melodramática organiza os modos de ação em um cotidiano inventado pelas telenovelas e os aproxima com o do público, que passa a assistir diariamente as intrigas da história.
A partir da década de 1970, a telenovela brasileira experimentou um tipo de linguagem que se constituiu numa tentativa de apagamento do excesso melodramático23, recuperando marcas narrativas de outros gêneros, como a comédia, entre outros, o que significou uma releitura da própria matriz que a originou. Essa transformação ficou conhecida como proposta realista, ponto de partida para a compreensão de uma teledramaturgia tipicamente brasileira e que passou a fazer parte de um mercado internacional de exportação de bens culturais.
A imaginação melodramática: o pé de Zeferina Baldaia
Considerado o último episódio da primeira fase (2003) de Retrato Falado, narra a história de uma cortadora de cana que se tornou campeã da corrida de São Silvestre24:
Meu nome é Maria Zeferina Rodrigues Baldaia, eu tenho 29 anos. Eu sou mineira, nasci em Minas Gerais, mas hoje eu moro em Sertãozinho, então eu me considero uma mineira sertanezina.
Esse testemunho inicial indica o processo pelo qual devemos olhar para a narrativa. Quando somos convidados para conhecer a sua história, somos levados a crer que essa trama é, antes de tudo, um fato do mundo cotidiano. Nesse sentido, a imagem da “mineira sertanezina” confere uma expectativa de realidade ao quadro.
A partir desse momento, entendemos que é fundamental que Zeferina represente a imagem do cotidiano na tela, posto que é essa expectativa que passa a legitimar a história que vai ser contada.
Em seguida, Denise Fraga diz que essa história começou quando a personagem tinha 12 anos de idade. Ela era bóia-fria e tinha o sonho de se tornar uma corredora igual a Rosa Mota (maratonista portuguesa). A história, dessa maneira, se inicia quando a personagem ainda era criança:
Zeferina/criança: Mãe quando eu crescer eu quero ser que nem a Rosa.
Mãe: Rosa? Você quer virá flor minha filha? Não é melhor ser um pé de maçã, um pé de banana?
Zeferina/criança: Não mãe, eu quero ser que nem a Rosa Mota .
Mãe: Rosa Mota? Ela trabalha em alguma fazenda por aqui?
Entrecortando o diálogo, aparece uma animação que explica para o público quem foi Rosa Mota e, em seguida, retorna para a cena inicial:
Mãe: Você quer ser corredora, né?
Zeferina criança: É, e a semana que vem vai ter uma corrida na cidade, posso?
Mãe: Como é que você vai correr? Nem sapato você tem minha filha!
Testemunho: (depoimento intercalado por encenações) Eu lembro que eu corri descalça por que eu não tinha tênis (voz off, inicio da dramatização, mas não mostra os pés da personagem). Na metade da prova a menina que era favorita a ganhar a prova, ela sentiu dores, aí eu perguntei para ela o que ela tava sentindo, ela falou que estava sentindo umas dores, aí eu peguei na mão dela coloquei ela sentada na sarjeta, e passou uns amigos meus que é conhecido e falou: Maria você não pode parar.
Amigo: Maria você não pode parar Maria, vai, vai que eu cuido dela, vai.
Testemunho: Nisso as outras meninas já estavam na frente, mas aí eu imprimi um ritmo, alcancei as meninas, acabei ultrapassando e ganhei a prova que era de 4 quilômetros e 200 metros (...).
A cena seguinte mostra o detalhe dos pés descalços de Zeferina quando ela ocupava o primeiro lugar do podium. O que assistimos nesse enquadramento é o pé da personagem acima do número 1 do podium. No nosso entendimento, essa imagem torna presente as marcas de uma imaginação melodramática, tendo em vista que, assim como no exemplo de Camila de Laços de Família, têm como finalidade produzir no espectador o sentimento de cumplicidade com a personagem. O quadro, que já tinha feito referência à situação financeira de Zeferina em dois momentos - na fala da mãe fictícia, “nem sapato você tem minha filha!” - e no testemunho da corredora - “eu lembro que eu corri descalça por que não tinha tênis” – construiu, com a imagem do pé de Zeferina, uma metáfora que sintetiza para o espectador a sua fala enquadrada em seu testemunho.
Nesse sentido, essa imagem, inserida entre o testemunho de Zeferina, passa a ter significados de ordem afetiva. Além da situação financeira, estão ali implícitos a perseverança, o obstáculo e a vitória. É por esse motivo que o pé de Zeferina remete à existência de uma imaginação melodramática na construção da personagem, mostrando claramente as marcas do gênero na formação narrativa do quadro, já que inspira à comoção, fazendo com que cada um de nós passe a torcer pelo sucesso da personagem.
Faz-se necessário, também, considerar como esses modos de organização do mundo midiático passam a fazer parte do mundo cotidiano, exteriorizando as problematizações existentes entre esses dois lugares. Após a primeira vitória, Zeferina é convidada por um treinador para fazer parte da equipe da cidade. Nesse momento surge o primeiro obstáculo ou uma peripécia, se quisermos empregar a caracterização de Ricouer (1995):
Zeferina criança: Acho eu não tenho tempo pra isso não senhor, trabalho o dia todo na roça.
Treinador: Imagina, olha que você podia ser que nem igual a Rosa Mota
Testemunho: Aí eu comecei a lembrar da Rosa Mota e falei por que não?
Zeferina/criança: Ta bom, eu aceito.
Testemunho: (cenas reais de Maria Zeferina correndo nessas rodovias) Finalzinho da tarde quando eu chegava, tomava um banho, colocava meu short, meu top, meu bonezinho e saía correndo pelas rodovias, que era onde eu morava.
Aos 18 anos, Zeferina engravidou do namorado que resolveu não assumir o filho e ainda deu dinheiro para que ela abortasse. O filho seria, dessa maneira, o seu segundo obstáculo:
Testemunho: Rasguei o dinheiro, joguei na cara dele e falei: eu não vou se você não tem capacidade de criar um filho uma criança você pode deixar que eu vou criar sozinha.
O filho de Zeferina nasceu aos oito meses de gravidez. E ela continuou treinando:
Testemunho: (em off, ilustrado por uma fusão de imagens que transforma o bebê de colo em uma criança com seis anos) Eu já voltei depois do resguardo eu voltei a correr, correr é uma coisa que eu nunca, nunca deixei, nunca desisti que sempre era o meu sonho. Treinei, treinei, treinei, eu lembro que eu treinei muito até que em 2000, em novembro, 19 de novembro, eu fui participar da maratona internacional de Curitiba.
À medida que a história avança percebemos como a maneira de Zeferina se narrar é atravessada por essa imaginação, tendo em vista que ela mesma se vê como uma mulher batalhadora que soube ultrapassar todos os obstáculos para ver seu sonho realizado. A sua fala é carregada de performances sentimentais: “eu comecei a lembrar da Rosa Mota e pensei, por que não?”, Mais adiante: “correr era uma coisa que eu nunca deixei, nunca desisti que era meu sonho”.
Assim, essas marcas estruturam não apenas a dramatização dessas histórias, mas também revelam a relação entre o mundo cotidiano e o mundo midiático, tendo em vista que estão presentes no testemunho. Nesse sentido, são vestígios capazes de organizar a forma como são narradas nossas próprias experiências, enfatizadas, no caso deste episódio, pelo desejo de correr. Esse desejo possibilita que Zeferina ultrapasse todos os obstáculos, já que, em 2001, vence a corrida de São Silvestre.
Para além das lágrimas midiáticas: a proposta realista
Para Borelli e Ramos (op. cit.), a década de 1970 foi o período de “consolidação definitiva” de uma indústria televisiva no país. A telenovela, por sua vez, é um dos programas mais importantes desse movimento e à medida que as emissoras se industrializavam ocorreu uma reorientação da linguagem e da temática abordada. Em 1968, a TV Tupi que estava passando por dificuldades financeiras, também em virtude da concorrência com a TV Globo, resolveu transmitir uma novela que não demandasse tanto investimento e possuísse uma história capaz de ser produzida com poucos cenários e figurinos.
Eis que Beto Rockfeller, escrita por Bráulio Pedroso, um autor iniciante, passa a ser transmitida pela emissora no horário das 20 horas. Investida de situações cômicas, a novela contava a história de um cidadão de classe média de nome homônimo, vivido pelo ator Luis Gustavo, que tentava de qualquer maneira fazer parte da alta sociedade paulistana.
Para Alencar, os elevados índices de audiência atingidos por essa narrativa evidenciam o cansaço do espectador com os dramalhões cheios de “Sheiks, duques e duquesas”, refletindo a necessidade de reorientação da teledramaturgia nacional, da qual a TV Globo foi o melhor exemplo. (Alencar: 2004, 51)
A trajetória da TV Globo se iniciou na década de 1950 quando Juscelino Kubitschek concedeu um canal televiso a Roberto Marinho, dono de um patrimônio empresarial que reunia o jornal O Globo, a Rádio Globo e a editora Rio Gráfica. Em 1962, o empresário fez um acordo com a empresa norte-americana Time-Life que tinha o interesse em investir na América Latina25.
Esse acordo, segundo Alencar, foi um dos fatores responsáveis pelo crescimento e consolidação da emissora, pois tinha como propósito não só a entrada de capital estrangeiro, como também a experiência técnica e administrativa de uma empresa que já estava consolidada no mercado internacional (Alencar: 2004).
Há que considerar o financiamento promovido pelo estado autoritário, com o intuito de promover melhores circunstâncias de transmissão, que percebeu as potencialidades do meio na veiculação do projeto político de integração nacional. Nesse sentido, em 1968, foi inaugurado o sistema Embratel, possibilitando uma melhoria no desenvolvimento das redes televisivas, culminando com a transmissão via satélite em 197026.
Borelli e Ramos afirmam que a TV Globo surgiu em um momento histórico mais favorável para a implantação de uma empresa comercial de televisão do que as suas concorrentes. A emissora, portanto, entrava no ar, sob condições mais adequadas para a criação do que se chamaria “padrão de qualidade”. Para Alencar, a emissora foi responsável pelo “abrasileiramento total da telenovela”, ao mesmo tempo em que a transformou em um dos produtos de maior audiência (Alencar: 2004, 52).
Evidentemente, a transformação ocorrida na telenovela fez parte de um processo social mais amplo que exprimia os anseios de uma sociedade em fases de modernização e que necessitava ser representada. Assim, a noção de realidade incidiu sobre todas as esferas de produção da telenovela. Nesse sentido, a proposta realista foi parte constituinte de um projeto interno, encabeçado por Walter Clark e Boni, de renovação da programação da TV Globo cuja finalidade era a criação do que chamavam Padrão Globo de Qualidade27.
Há que ressaltar o descontentamento dos autores com relação à inflexibilidade do modelo adotado por Glória Magadan, responsável pelo departamento de telenovela da emissora. Dias Gomes relata a pressão que a diretora de programação exercia sob Janete Clair para que não houvesse nenhuma questão brasileira em suas histórias:
“Havia uma série de restrições. Ou as novelas eram encomendadas a ela (Janete Clair) ou, quando Janete sugeria, eram obrigadas a serem adaptadas ao gosto de dona Glória. Janete fez umas três novelas nesse período e ela sabia que Glória não permitia em hipótese alguma a temática brasileira” (Junior: 2001, 89).
Em outra entrevista, o autor revela o que pensava a autora a respeito da criação de uma novela ambientada no Brasil:
“Uma vez eu disse a Janete (Clair): olha diga a essa senhora para realizar novelas passadas aqui no Brasil, tratando de nossa cultura e de nossos problemas. A resposta que a Janete me trouxe foi esta: ela disse que o Brasil não é um país romântico e que não se pode admitir numa novela um galã com o nome de João da Silva. Ele tem que se chamar Albertinho Limonta ou Ricardo Montalbán” (Mattos: 2004, 77).
A insatisfação gerada entre os autores e produtores pela maneira como Glória Magadan concebia a telenovela acabou sendo o motivo pelo qual, em 1969, a diretora pediu demissão da TV Globo. Dessa maneira, o processo de mudança aberto por Beto Rockfeller, na TV Tupi, serviu como fonte de inspiração para os novos formatos .
Boni atribuiu a Daniel Filho a responsabilidade de construir um formato narrativo com características da linguagem cinematográfica em detrimento dos excessos performativos do teatro. Assim, convidou Dias Gomes28 para fazer parte do casting de autores da emissora, espelhando o que Borelli e Ramos vão chamar de a entrada de escritores “considerados mais eruditos”, com “experiência no teatro e no cinema” 29 (Borelli e Ramos: 1989, 93).
A experiência desses autores em outros meios, principalmente o teatro, resultou em uma releitura da forma de contar da telenovela que incorporou outros gêneros e se distanciou da narrativa melodramática canônica. Esse deslocamento, por sua vez, só pode ser entendido dentro de um contexto que demandava aproximação de questões ligadas ao cotidiano nacional. A proposta realista em primeiro lugar significava uma forma de “retratar, discutir e criticar a realidade brasileira” (Idem, ibidem).
Se por um lado os autores incorporaram outros gêneros em suas narrativas, por outro houve um movimento de apagamento do excesso melodramático correspondente ao padrão latino de telenovela. A idéia de torná-la brasileira mexeu com a estrutura técnica que passou a introduzir cenas externas, mostrando ruas, edifícios ou símbolos de cidades brasileiras que pudessem ser reconhecidos pelo público.
Houve a simplificação do diálogo, tornando as falas mais coloquiais com o uso de gírias e de sotaques referentes às regiões brasileiras. Alencar aponta, também, o surgimento das tramas paralelas, conectadas a principal, isto é, a do par romântico. Para Hambúrguer, a proposta realista se constitui pela necessidade de uma permanente atualização da “contemporaneidade” através da moda (roupas, sapatos, griffes), da “tecnologia” (computadores, telefones sem fio, carros importados) e de “acontecimentos políticos correntes” (Plano Cruzado, Impeachment de Collor) (HAMBÚRGUER: 2006, 466) 30.
Assim, o excesso sentimental que caracterizava a telenovela latina foi sendo amenizado pelo garimpo e futebol em Irmãos coragem (1970), pelo subúrbio carioca e o jogo do bicho em Bandeira 2 (1972), por um engarrafamento no trânsito em O Espigão (1974), pelos desmandos de um coronel baiano em O bem amado (1973) ou pelo crescimento caótico da cidade de São Paulo em O Grito (1975).
São ainda exemplos desse tipo de telenovelas: Verão Vermelho (Dias Gomes - 1970), O Cafona (Bráulio Pedroso – 1971), Cavalo de Aço (Walter Negrão - 1973), A Corrida do Ouro (Lauro César Muniz e Gilberto Braga – 1974), Gabriela (adaptação de Walter Jorge Durst - 1975) A Escalada (Lauro César Muniz - 1975), O feijão e o Sonho (Benedito Ruy Barbosa - 1976), Dona Xepa (Gilberto Braga – 1976), Espelho Mágico (Lauro Cezar Muniz – 1977) e Dancing Days (Gilberto Braga – 1978/1979), todas exibidas pela TV Globo.
O que chamamos de proposta realista foi, portanto, a mudança na maneira de contar da telenovela que passou a incluir outros gêneros em sua narrativa para, com isso, incorporar temáticas ligadas ao universo nacional. Nesse sentido, os dramas passaram a ser indicativo de um comportamento cotidiano que revelou as tensões existentes nas relações familiares contemporâneas.
O triunfo da virtude espelhado pela conquista da felicidade foi reatualizado, convidando o púbico a adentrar no reino do sentimental por onde suas histórias iriam disseminar gestos, hábitos e concepções que são extraídos de uma relação que se faz entre o mundo cotidiano e o mundo da telenovela.
Desde a década de 1970, a telenovela brasileira se constitui de discursos que voltam ao mundo cotidiano de grupos sociais diferenciados e se expressam nas conversas familiares, com os amigos ou nos colégios, entre diversas outras possibilidades. Essas discussões são alimentadas pelo próprio mundo midiático, que elabora pesquisas de opinião, sites, revistas, jornais, programas televisivos e radiofônicos, criando uma espécie de circularidade que desloca o mundo cotidiano para o da telenovela, voltando para a vida diária e sendo retomada pela narrativa novelesca, através das “cenas dos próximos capítulos”.
Faz-se necessário lembrar que as telenovelas são escritas no mesmo momento em que são transmitidas, com uma pequena diferença necessária para a gravação dos capítulos. Nesse sentido, o jogo moral, característico da narrativa, só pode ser entendido quando essa atravessa as fronteiras do mundo midiático e passa a habitar o cotidiano. É nesse momento que cristaliza uma rede de especulações que envolve as vozes dissonantes dos diferentes segmentos da população, da emissora e dos profissionais que nelas atuam.
Afirmamos, portanto, que as transformações ocorridas na telenovela, a partir da década de 1970, é o ponto de partida para compreendermos uma linha narrativa que se formula pelo diálogo entre as expectativas de realidade e ficcionalidade, acarretando numa maneira de compreensão diferenciada, na qual o mundo cotidiano do espectador é entrelaçado pelo mundo cotidiano dos personagens midiáticos.
Foi por conta desse movimento de presentificação das questões públicas nacionais, levando o espectador a se sentir representado por essas narrativas, que os modos de contar da telenovela adquiriam uma espécie de “estatuto de real”. Esse processo introduziu maneiras de narrar que transportava para a ficção marcas de realidade que, no nosso entendimento, abriram caminho para a incorporação de convenções características do documentário.
Entendemos que essas marcas são de três ordens. A primeira está ligada aos modos de comportamento que foram introduzidos no dia-a-dia dos personagens. São exemplos dessas marcas lavar roupa e louça, fazer supermercado, colocar a mesa, ir ao cabeleireiro, andar pela praia, usar short e camiseta, tomar banho, passar em uma livraria, ficar descalço em casa, cortar a unha, etc. Citamos como referência as novelas de Manoel Carlos, Felicidade (1991-92), Por amor (1997-98) e Laços de Família (2000-01), todas exibidas pela TV Globo.
A segunda diz respeito à “participação especial” de personalidades que entram nas tramas como personagens de si mesmos, para depor sobre as questões sociais tematizadas por essas narrativas. A telenovela, dessa maneira, legitima seu conteúdo informativo através de depoimentos reconhecidos e autorizados pelo público.
São personalidades como o arquiteto Oscar Niemeyer que depôs sobre a qualidade de vida nos centros urbanos, em Sinal de Alerta (1978-79, de Dias Gomes), como os senadores Eduardo Suplicy e Benedita da Silva que participaram da cena do velório do senador Roberto Caxias (Carlos Vereza) em O Rei do Gado (1996-97, de Benedito Ruy Barbosa), ou como o lamento da cantora Nana Caymmi à “amiga” Yvete (Vera Fisher) sobre a experiência de ter um filho usuário de drogas em O Clone (2001-2002, de Glória Perez).
As telenovelas introduziram recursos de linguagem que as aproximam do formato documental. Nesse sentido, percebe-se o artifício de o personagem olhar para a câmera para simular uma entrevista, com um jornalista fictício ou não, como no caso do jogador do Flamengo, Duda (Cláudio Marzo), em Irmãos Coragem (1970, de Janete Clair). Ou, para conversar com o espectador, como no caso dos personagens da novela Guerra dos Sexos (1983-84, de Silvio de Abreu). Esse recurso, como mostra Hambúrguer, introduz na narrativa um efeito reflexivo, rompendo com o “o universo ficcional da narrativa”, posto que, para ela, esse mundo é baseado na invisibilidade da câmera. (HAMBÚRGUER: 2006, 469)
Além disso, imagens de acontecimentos nacionais passam a habitar o mundo das telenovelas, seja para contextualizar uma época em tramas históricas, seja em situações que se entrelaçam ao destino dos personagens. Lucas (Mário Gomes), jogador que queria ser contratado por um grande time, tem seu desejo realizado no final da novela Vereda Tropical (1984-85, de Carlos Lombardi). O último capítulo transmitiu a entrada do personagem em campo, sendo abraçado pelo jogador Serginho, em meio a uma partida entre o Corinthians e Vasco, causando surpresa nos árbitros que não sabiam como lidar com a situação.
Há que ressaltar, ainda, o movimento inverso, quando eventos da novela saem do reino do ficcional e tornam-se acontecimentos nacionais. Nesse caso, vale lembrar a imagem das Mães da Candelária, mulheres que denunciaram publicamente o desaparecimento de seus filhos, em Explode Coração (1995, Glória Perez) e a passeata contra a violência urbana em Mulheres Apaixonadas (2003, de Manoel Carlos), que mobilizou setores da população reivindicando melhores condições de vida31.
Quando essas marcas são incorporadas à narrativa, problematizam a fronteira existente entre o mundo midiático e o mundo cotidiano, formalizando, no dizer de Hambúrguer, uma sensação de pertencimento a uma comunidade imaginada. “A novela atualiza seu potencial de sintetizar uma comunidade imaginária, cuja representação, ainda que distorcida e sujeita a uma determinada variação de interpretações, é verossímil, vista e apropriada como real e legítima”. (HAMBÚRGUER: 2006 , 484)
É nesse sentido que entendemos a relação entre a narrativa da telenovela e de Retrato Falado. Este (entre outros programas criados a partir da década de 1990) é parte constituinte de uma tradição narrativa que se legitimou pela necessidade de atrelar a ficção a “correntes de realidade”. O formato utilizado nos depoimentos transmitidos em Explode Coração, que introduziu pela primeira vez na telenovela o testemunho do sujeito comum, deixou vestígios de uma estrutura e se constituiu pelo diálogo entre uma imaginação melodramática e as marcas do documentário.
Nossa intenção ao fazer essa breve historicização da telenovela foi apontar como, a partir da proposta realista, fabulou-se uma maneira de contar que buscou (e busca) exteriorizar as contradições existentes no cotidiano pelo mundo da ficção midiática, que no dizer de Berger e Luckmman (op. cit.), só pode ser entendido como um “enclave” dessa “realidade mais real” que é a vida diária.
Assim, entendemos que a presença do sujeito comum, formatado pelas convenções de linguagem do documentário, em Retrato Falado é desdobramento desse processo. E para finalizar o capítulo, voltaremos a seu início, analisando os percursos da história de Terezinha, para com ela apontar, afinal, como se estrutura o efeito-documentário na trama.
3.3. O mundo de Retrato Falado pelo testemunho de Terezinha
O desejo de Terezinha, como informamos no começo desse capítulo, era se tornar motorista de caminhão, pois para ela, “lugar de mulher é no trabalho”. As falas iniciais desse testemunho foram montadas em plano médio, com a personagem localizada no centro da imagem. Não vemos quase nada do ambiente em que a entrevista foi realizada, nem o repórter. Percebemos que esse enquadramento, mostrando parte de seu corpo, foi o único utilizado do começo ao fim do episódio para captar o testemunho de Terezinha.
A escolha pelo formato do testemunho em Retrato Falado está vinculada a uma proposta narrativa que busca delegar à ficção uma expectativa de realidade. Nesse sentido, quando assistimos a imagem formatada de Terezinha temos a indicação de que se trata do sujeito que viveu a história, sendo este, antes de tudo, personagem do mundo cotidiano.
Temos essa noção antes que Denise Fraga nos aponte ou mesmo que haja algum crédito com o nome de Terezinha. Essa expectativa de realidade, que é presumida, advém do enquadramento da imagem e se refere também a uma convenção de linguagem formatada pelo documentário. Assim, o testemunho será sempre encenado da mesma maneira, tendo em vista que é essa organização da imagem que nos revela a distinção entre “o que encenação e o que não é”.
Há, portanto, uma separação clara do formato do testemunho para o da encenação, tendo em vista que a proposta é não diluir as fronteiras entre as expectativas de ficcionalidade e de realidade, pois, como apontamos no segundo capítulo, o riso se constitui pelo diálogo propositalmente articulado entre esses dois lugares:
Na tentativa de aprender a dirigir Terezinha, ao lado do marido que está dirigindo o caminhão, insiste com ele:
Denise/Terezinha: (na boléia de caminhão enquanto o marido está dirigindo) Deixa eu pegar no volante só um pouquinho?
Marido: Deixe de ser insistente, mulé!
Denise/Terezinha: Deixa, anda...
Marido: Não
Denise/Terezinha: Deixe, só um pouquinho!
Marido (assustado): Ene, a, o, til, não!
Denise/Terezinha: Deixe.
Marido: Mas por que que eu haveria de deixar?
Denise/Terezinha: Por que? Por que mulher não deve se encostar.
Em seguida entra a fala de Terezinha:
Porque se ela tem o marido hoje e dá tudo a ela, ela não confie nisso não, porque nós hoje tamo vivo, amanhã nós tamo morto e se o marido morrer e ela não souber fazer nada?
Na mesma seqüência, o marido responde:
Marido: Vire essa boca pra lá.
Denise/Terezinha: (virando a boca para o outro lado.) Eu viro, mas que é verdade, é (ela vai tentando carinhosamente, chegar perto do marido, beijando, até que ela coloca o braço dela na direção).
A seqüência acima descrita revela os mecanismos da narrativa do quadro. Quando o testemunho entrecruza a encenação, percebemos dois formatos narrativos diferentes. Um que se baseia na incorporação das marcas do riso da praça pública pela caracterização dos cenários e performance da atriz Denise Fraga. E o segundo que se constitui apenas pelo enquadramento de Terezinha, retirando da imagem qualquer vestígio que possa denotar a existência de uma encenação.
É esse recurso narrativo adotado em torno da fala de Terezinha que imprime na imagem uma expectativa de realidade. Ele irá se dissolver quando Denise Fraga aparecer. Portanto, quando o diálogo entre essas duas imagens se efetua, como no exemplo que mostramos acima, há uma súbita mudança na organização desses dois discursos. Assistimos a união de duas temporalidades distintas: uma que narra o acontecimento e outra que o presentifica. O choque causado por essa junção, que pode ser exemplificado pela fala do marido (“vire essa boca pra lá”), unindo a fala de Terezinha com a encenação, instaura a comicidade em Retrato Falado.
Afirmamos que o depoimento é base da expectativa de realidade existente no quadro. Entendemos que a fala de Terezinha é a porta de entrada na narrativa. E , ao mesmo tempo em que personaliza a história, também atua como a voz narradora. É, portanto, a fala que simboliza a experiência, ou seja, aquela que introduz no mundo midiático os hábitos da vida diária.
A fala de Terezinha se torna o contraponto da performance de Denise Fraga e é parte constituinte do riso em Retrato Falado. Rimos quando nos damos conta de que o “absurdo” vivido pela atriz é um fato que aconteceu no mundo cotidiano, ou seja, possui “tons” de realidade. É por esse motivo que nomeamos a fala de Terezinha como testemunho, por entendermos que a sua função na narrativa é a simbolização de uma experiência de vida.
Apontaremos, a seguir, a mesma estrutura encontrada no testemunho em um outro recurso narrativo presente no quadro: o comentário. Após a insistência de Denise/Teresinha, o marido resolve ensiná-la a dirigir:
Marido: (na boléia, explicando para ela como ela terá que fazer para ligar o caminhão) Pra ligar é assim ó, você vira a chave, aperta esse botão e junto você tem que pisar no acelerador. Um , dois e já (ela liga o carro). Isso. Agora aperta a embreagem bem forte lá no fundo. Agora você vai soltando a embreagem bem devagarzinho...
Denise/Terezinha: (ela solta a embreagem muito rápido e o caminhão dá um pulo) Foi muito rápido?
Marido: Mas é claro, mulher. Você não vai aprender de jeito nenhum, desse jeito!
Terezinha: Mas meu filho, tenha paciência....
Marido: Tudo bem. Vamo tentar de novo. Você liga, aí o carro sozinho, vai (ela aperta o botão do pára-brisa). Não é isso!
Denise/Terezinha: não, não, espere, espere, espere, oxi homi, espere!(Ela fica desesperada e começa a mexer em todos os botões: buzinha, aperta o jato de limpeza, acende o farol entre outros)
Marido: Eu desisto você está é burra!
Após algumas discussões, o marido resolve tentar ensiná-la mais uma vez até que Terezinha consegue fazer o caminhão andar:
Marido: (ela gira a chave do carro) Isso, muito bem, já conseguiu ligar só, pelo menos ligar você já ta sabendo.
Denise/Terezinha: Agora, agora.
Marido: Agora você engata a primeira e vai soltando a embreagem devagarzinho...(ela consegue).
Denise/Terezinha: Eu consegui, né? (o caminhão vai andando ao som do Coro Aleluia, de Haendel).
Após o sucesso inicial da personagem, entra em cena o comentário de duas caminhoneiras:
Caminhoneira 1: A gente sente uma total liberdade, é muito gostoso, só a gente que ta aqui pr sentir mesmo.
Caminhoneira 2: E outra sensação mais importante é de saber que a gente também é capaz de dirigir um caminhão.
Nomeamos esses depoimentos de comentários pela função dessas falas na reiteração de uma expectativa de realidade. Para Foucault, o comentário é o elemento que enfatiza o que já foi dito no primeiro discurso, no mesmo momento em que possibilita a abertura para novos textos. É nesse sentido que o comentário instaura uma permanente repetição de uma lógica de sentido, que no quadro se estrutura por um movimento circular de entrada e saída no mundo cotidiano (Foucault: 2000).
A fala das caminhoneiras possibilita, através da mesma lógica de sentido (produção de uma expectativa de realidade), a incorporação da audiência na história. Se o testemunho tem como proposta particularizar uma experiência do mundo cotidiano, o comentário, por outro lado, produz um efeito oposto: elas são colocadas em cena para generalizar uma experiência pontual do mundo privado e, assim, servir como representação de um público presumido, que nesse sentido, é o sujeito comum. A fala final de Terezinha reitera essa perspectiva, quando passa opinar sobre a posição que a mulher deveria ter na sociedade.
Nenhum deles quiseram se formar, nenhum dos meus filhos, como algum deles, foram formado (o testemunho entra em off), gerado na cabine do carro, todos tiveram sangue misturado com óleo diesel, né? Aí resultado foi que eles, nenhum quis formar. (cenas da família de Terezinha) Então depois dessa vida de caminhoneiro e de toda a luta, o que sobrou foi essa família maravilhosa, meus filhos, meus netos, minhas netas...Mas sempre digo: lugar de mulher é no trabalho.
Apontamos nesse capítulo as marcas do melodrama e do documentário existentes em Retrato Falado e mostramos que essa estrutura faz parte de uma linha narrativa da televisão brasileira que originalmente foi traçada pela telenovela. Problematizamos a relação entre o mundo cotidiano e o mundo midiático. Cabe, portanto, agora analisar como os diferentes recursos de linguagem - as animações, o testemunho, os comentários e a dramatização - são articulados dentro do quadro para a fabulação dessa narrativa. É esse movimento que mostraremos no próximo capítulo.