4.9.07

| wonderful world

Ao recordar meu trabalho na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, para escrever este pequeno relato, alguns textos que estudei ao longo do curso de comunicação vieram-me à cabeça. Primeiramente recordei “Raça e História” de Lévi- Strauss. Pensei nas trocas culturais, no relativismo das culturas nos diálogos e intercâmbios sociais, no etnocentrismo do observador. No sentido oposto da proposta de Strauss, veio-me à mente o texto de Morgan, suas considerações sobre os três estágios da humanidade: selvageria, barbárie e civilização. Recordei Stuart Hall e as “imagens que nos interpelam” em cada esquina. Revi “A Ordem do Discurso” de Focault para organizar o pensamento discursivo e a forma de abordagem midiática dada ao Complexo da Maré. De certa forma, sinto que o curso inteiro de comunicação está passando pela minha cabeça enquanto escrevo este trabalho. Sinto uma profunda satisfação de ter tido a oportunidade de ser, ou ter sido, aluno da Universidade Federal Fluminense. Conheci pessoas, autores, trabalhos, professores, projetos e sonhos que jamais teria tido contato se não tivesse entrado para esta academia. Sou eternamente grato por isso.

Ao ser impelido a fazer este último trabalho, a proposta pareceu-me simples, mas à medida que comecei a refletir sobre ele, janelas começaram a surgir à minha frente. Ao pensar no texto de Lévi-Strauss, pensei em quão perto de mim a realidade daquela comunidade está. As palavras, os gestos, os sonhos de consumo, os conflitos... tudo tinha uma familiaridade incrível. Foi fácil entrar e ser mais um entre eles. Mas ao conviver com aquela realidade – a violência, a pobreza, a sujeira, o desperdício de vidas, a gravidez precoce... – Morgan veio-me à cabeça. Pensei naquele lugar como algo distante, um lugar perdido no tempo, que precisava ser salvo, trazido à civilização, aos novos tempos.

Na Avenida Brasil, uma série de galpões abandonados mostrava-me a decadência econômica daquele lugar. Na entrada da favela, uma antiga fábrica, que virou templo da Igreja Universal, prometia o fim dos sofrimentos aqui e no além. Nova Holanda, a mais violenta das dezesseis favelas do Complexo da Maré, onde moram duzentas mil pessoas, não lembra em nada a sua homônima do velho continente. Nas ruas principais, centenas de meninos e meninas circulavam desocupados. Alguns olheiros do tráfico vigiavam os carros que entravam e no fim desta mesma rua, um batalhão da polícia militar parecia abandonado.
Meu contato com este lugar se deu porque participei de um documentário para a TVE e Canal Brasil sobre educação em comunidades de risco. Era o responsável por encontrar histórias emblemáticas de como a educação e o esporte podem mudar a vida das pessoas. Encontrei muitas: estudantes universitários, professores, esportistas, ex-traficantes, vagabundos, perdidos... uma lista gigantesca de pessoas que conseguiram mudar seu destino. Identifiquei-me muito com as histórias que me foram trazidas. O importante desta empatia foi dissolver o pensamento que eu precisava salvá-los ou mostrar o caminho a quem quer que seja. O pensamento de Morgan de selvageria, barbárie e civilização morreu dentro de mim. Os sonhos daqueles jovens eram iguais aos de quaisquer outros. Percebi a padronização do Desejo causado pela comunicação de massa. Percebi “como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo consumo, às tendências e modas mundiais”. (Hall, 1997 p. 28). Certa vez, estava procurando um lugar para almoçar dentro da favela, quando dei de cara com dois jovens de no máximo 18 anos fortemente armados em uma esquina, alguns metros depois, em frente a uma locadora, um pôster de um famoso Raper americano chamado Fifty Cents trazia a seguinte inscrição embaixo: “Fique rico ou morra tentando!” Os dois garotos eram as sínteses deste modo de vida.

À medida que fui me envolvendo com as pessoas, tomei conhecimento dos problemas do dia a dia: as dificuldades para arrumar emprego por morar em uma favela, por ser negro e ter pouco estudo. A frustração, a violência, o medo e a alienação. Talvez a personagem síntese deste lugar seja a pastora Cláudia. Após perder dois filhos para o tráfico de drogas, ela passou a dedicar sua vida a orientar outros jovens a ter uma oportunidade na vida. Seu trabalho é literalmente salvar vidas. Para muitos adolescentes, aqueles que estão jurados de morte pelos traficantes, a pastora Cláudia significa a última chance. Em uma entrevista com ela, perguntei qual era o grande inimigo do seu trabalho. A Nike, respondeu ela. Os adolescentes ficam ensandecidos para conseguir os objetos que são símbolos de sucesso e prestígio. Outro depoimento esclarecedor nesse sentido, foi dado por nosso guia, o Bira. Segundo ele, os grilhões hoje não são de ferro, são midiáticos. E continuou: “Os caras vieram aqui, olharam a gente e pensaram ‘esses caras consomem’. O que eles fizeram? A Puma (uma marca esportiva) começou a patrocinar várias seleções africanas. O que aconteceu? Todo mundo dentro da favela hoje tem ou quer ter uma peça da Puma,. Tá na moda!” Não sei se a radicalidade do discurso pode ser tomada como uma verdade, mas o fato é que os jovens adoram as marcas que foram citadas e muitos morrem na busca de seus desejos. Mas creio que esta alienação não seja um privilégio dos adolescentes da Maré, a maioria deles, independente da classe social, quer as mesmas coisas. O que muda é a forma como vão consegui-las.

As histórias com seus inúmeros finais foram reveladas a mim à medida que comecei a fazer parte da vida daquelas pessoas. Aos poucos deixei de me sentir um estrangeiro e passei a achar normal um sujeito circular de fuzil pelas ruas. Esse é um dos problemas dos lugares violentos: a complacência. Aos poucos deixei de me sentir chocado com o cotidiano daquele local. O medo foi dando lugar a uma duvidosa segurança. O lixo passou a ser paisagem, e as mortes coisas da vida... Estava assistindo televisão quando vi uma reportagem na comunidade onde estava trabalhando. No mesmo dia eu estive no local noticiado e senti mais medo pela tv do que ao vivo. Percebi a minha complacência com a ausência do Estado naquele lugar e algo que muito moradores haviam reclamado comigo, mas que não tinha levado em consideração: a representação na mídia dos habitantes de áreas carentes. O discurso televisivo mostra que a morte de uma criança ou de um inocente é o preço a ser pago na guerra contra o tráfico[1]. Mostra a repressão como única saída, e que todos os moradores são coniventes com o tráfico de drogas. Esses são alguns dos motivos que os levam a não permitir filmagem no local. A abordagem televisiva reforça os preconceitos, divide a cidade e mostra a pobreza como um câncer que deve ser extirpado a qualquer custo.

Comuniquei tudo que vi e senti ao diretor do filme. Combinamos de fazer um filme positivo, sem floreios, mas falando de como as pessoas que tiveram uma oportunidade puderam mudar o seu destino. Conseguimos tratar a violência como um dos problemas que assolam a Nova Holanda, não o único. Mostramos as histórias de sucesso que muitos tiveram ao ter uma oportunidade. Após o filme pronto, fui encarregado exibi-lo na comunidade. Estava ansioso pelo resultado. Todos gostaram. Dentro de nossas limitações de tempo e orçamentárias ficamos satisfeitos com o resultado e, o mais importante, foi tratar com respeito todos os participantes do filme.

Agora estou trabalhando em um projeto dentro do DEGASE, o sistema carcerário para menores infratores. É o outro lado do mesmo desperdício. Vidas jogadas foras, inversão de valores, abandono, maus tratos, frustração e desespero. Dei quatro aulas dentro do sistema. Constatei que lidar com as meninas é muito pior que lidar com os meninos. Elas são mais passionais. O principal é que acredito que aqueles garotos podem mudar seus destinos, que eles não estão condenados àquela vida. Percebo muitos sonhos de consumo e nenhuma estratégia para alcançá-los. Alguns nunca foram ao cinema, muitos não são alfabetizados e a maioria tem sérias dificuldades para se expressar. São acuados, desconfiados e inibidos. O reconfortante é quando a aula acaba e eles vêm pedir informações, falar algo, perguntar quando voltaremos. São carentes em todos os sentidos. Minha estratégia é jamais perguntar o que os trouxe até ali. Tento olhar para eles como jovens que precisam de ajuda, não como infratores. O trabalho está só começando, ficarei lá por cinco meses, prometo fazer um relato minucioso ao final desta jornada.

Por último gostaria de agradecer a atenção e o trabalho que você, Professor Marildo, desenvolveu comigo no pouco tempo que passamos juntos. Torço para que possamos voltar a nos encontrar no ambiente acadêmico. No mais é deixar um forte abraço e o desejo de permanecer em contato.

Um abraço, Marco Borges


( [1] Nas últimas semana, 41 pessoas morreram no Complexo do Alemão vítimas dos tiroteios entre policiais e traficantes. Não lembro de ter ouvido um discurso indignado em nenhum meio de comunicação enquanto os confrontos aconteciam)


Estudos Culturais 2007/1