10.4.07

| conhecer do interior a cultura que se deseja explicar

| segue abaixo, em português lusitano, reprodução do trecho do primeiro capítulo do livro "Introdução à Análise dos Fenômenos Sociais"- Editora Gradiva - Portugal, 2003 do professor Luc Van Campenhoudt, no qual o autor cita o posicionamento de Richard Hoggart sobre estar imerso à cultura que se deseja explicar além de outos pontos inerentes à sua obra.

"Conhecer do interior a cultura que se deseja explicar constitui um trunfo precioso, mas comporta o perigo de falta de recuo e de ver o seu juízo deformado pela sua própria posição. Logo de entrada, Hoggart coloca assim o problema:
O observador saído das classes populares pode, tanto como os autores bur­-gueses, embora de uma maneira que lhe é própria, ser sujeito a ilusões de óptica. Eu sou originário de uma família operária e sinto-me, neste mesmo instante, simultaneamente próximo e afastado da minha classe de origem. Daqui a alguns anos, suponho-o, esta ambivalência não será talvez assim tão notória. Mas ela exerceu e exercerá sempre uma influência sobre as minhas análises. A minha origem social ajuda-me sem dúvida quando se trata de sentir e de fazer reconhecer a tonalidade vivida da vida popular, do mesmo modo que me preserva de algum desprezo a que são votados os observadores burgueses. Mas, por outro lado, esta pertença psicológica apresenta perigos consi­deráveis. Que vale a minha opinião segundo a qual, como exponho na segunda parte da obra, as mudanças recentes das sociedades industriais tendem a retirar às classes populares o melhor da sua cultura específica? É nisso que acredito, a partir de uma análise da evolução que eu quis tão objectiva quanto possível. Mas sei bem para onde me levam as minhas tendências: ao escrever este livro foi-me necessário resistir sem cessar a uma convicção profunda que me conduzia a julgar o antigo mais admirável do que o novo e a condenar certas formas de lazer moderno, sem que os documentos que eu analisava fornecessem sempre um fundamento suficiente para esse diagnóstico. É até de presumir que uma certa nostalgia guiava já a minha leitura dos documentos. Fiz o que pude para controlar os efeitos desta tendência. Por outro lado, nas duas partes da obra pode entrever-se uma propensão (sem dúvida explicável pela minha origem e pela minha biografia) para mostrar uma severidade muito particular a respeito dos aspectos do comportamento popular que reprovo. Poder-se-á interpretar este moralismo como um efeito da necessidade de exorcisar os meus próprios demónios ou, porque não?, da tentação de rebaixar a minha classe, tentação que se exprimiria pela ambiguidade da minha atitude a seu respeito. Correlativamente, apercebo-me muito bem de que fui levado a valorizar os traços da vida popular que eu aprovo, como se, idealizando o meu meio de origem, dissesse inconscientemente ao meu leitor: «Vejam, eu tive, apesar de tudo, uma infância mais rica do que a vossa.» Um autor encara como pode estes perigos, até mesmo na própria escrita. É pouco provável que alguém aí chegue alguma vez. O leitor, esse, tem sempre uma vantagem, a dos ouvintes de Marlow no romance de Conrad No Coração da Noite: «Eviden­temente, vocês vêem nesta história mais do que eu próprio vejo. Vocês vêem-me nela.» O leitor vê não somente o que há manifesta intenção de lhe dizer, mas também, através do tom e das acentuações inconscientes, o homem social que se esconde atrás do locutor..
O subjectivismo* consiste em reduzir todo o conhecimento áquilo que se revela na sua própria percepção subjectiva. Hoggart precavia-se contra este risco recorrendo a uma panóplia de métodos de diferentes pesquisas com as quais confronta e articula os ensinamentos. O âmago da sua actuação é o inquérito etnográfico. Consiste numa observação rigorosa e aprofundada dos modos de vida cujo plano obedece a um certo número de rubricas. Estas incidem nomeadamente sobre a organização do espaço e do habitat, as deslocações e os itinerários dos habitantes, os ritmos de vida, as estruturas familiares e as relações entre gerações e entre sexos, as práticas culturais e religiosas e o uso dos objectos que fazem parte do mundo quotidiano. Durante numerosos anos, Hoggart frequentará o seu «terreno» de uma maneira inin­terrupta. Graças a isso, será capaz de conjugar uma visão de conjunto da vida popular e um olhar extremamente fino que agarra o que ele próprio chama «os imponderáveis da vida autêntica», quer dizer, esses mil e um pormenores, rotinas e acontecimentos que fazem a vida de todos os dias, cuja importância pode parecer negligenciável a priori, mas que, olhando-se de mais perto, podem mostrar-se cruciais e muito reveladores. Hoggart completará esta observação intensiva com um inquérito, efectuado com a ajuda de questionário, que lhe fornecerá os dados numéricos sobre a prática da leitura das classes operárias10. Além disso, analisará o conteúdo de livros, de jornais, de publicidade com a ajuda de técnicas utilizadas pelos especialistas de análise literária. Por último, confrontará as suas próprias observações com as realizadas por outros investigadores que trabalhavam sobre o mesmo assunto, de maneira a evitar as generalizações demasiado apressadas.
Hoggart insiste muito em particular sobre a importância dos métodos ditos qualitativos, tais como as observações muito minuciosas no terreno. Aos seus olhos, os inquéritos que produzem dados estatísticos são úteis, mas insuficientes por si sós. Podem mesmo ser, segundo ele, «a pior ou a melhor das coisas. É preciso saber ir para além das regularidades dos números, apreender nos comportamentos o que esses comportamentos simbolizam e ultrapassar o sentido literal das declarações para aí descortinar a significação (por vezes contrária ao sentido aparente11 da declaração) ou para pôr em relevo os valores profundos que se dissimulam por detrás das formas idiomáticas12 e dos conformis­mos rituais»13. Longe de constituir um obstáculo a um conhecimento científico, a sua experiência pessoal e o seu conhecimento íntimo da cultura popular permitirão tirar proveito dos inquéritos, desmontando as suas armadilhas. A sua experiência directa pode então ser utilizada frutuosamente, pois inscreve-se num dispositivo metodológico diversificado em que é confrontada com outras fontes de saber, produzidas com a objectividade dos métodos científicos. Assim, a sua obra pode ser simultaneamente autobiográfica e rigorosa.

1.2 A cultura popular sob o olhar burguês
Como é o caso de muitas outras obras, pode-se ler esta de diversas maneiras, a partir de várias preocupações. Na apresentação da edição francesa, J. C. Passeron explica que «As análises de Richard Hoggart nunca são tão originais como quando põem em causa a imagem que as outras classes sociais* fazem das classes populares e dos seus valores*»14. É esta perspectiva que reteremos aqui para entrar no conteúdo do livro, pondo em paralelo a visão burguesa de certos traços da cultura popular e a análise que dela é feita pelo próprio Hoggart. Desta maneira, longe de dar conta de toda a riqueza da obra, podemos, não obstante, obter dois resultados: captar melhor a cultura popular e compreender melhor como o olhar incidente sobre os outros é moldado pelo ser social daquele ou daquela que o conduz. Pelo facto de os ter ouvido e lido com frequência, Hoggart sabe como os juízos dos burgueses e dos intelectuais sobre a degradação da cultura popular são, em geral, irremediavelmente condescendentes15. Vejamos isto mais de ­perto a partir de um exemplo.
Uma crítica correntemente dirigida às classes populares é a sua prodigalidade e a sua imprevidência. Acostumadas às despesas irreflec­tidas tendo em conta os seus recursos, seriam incapazes de pensar no dia seguinte, de gerir racionalmente um orçamento e de controlar os créditos imprudentemente assumidos para comprarem, por exemplo, um electrodoméstico, uma televisão ou um carro. Por ocasião das festas é frequente os pais oferecerem prendas tão caras quanto inúteis aos seus filhos, que, por outro lado, não são nem bem alimentados nem correctamente educados. As refeições são habitualmente substanciais e em geral fartas, mas falta-lhes diversidade. Mesmo que o carvão arda sempre no fogão que ocupa o centro da divisão comum, o certo é que as crianças andam com roupa usada e mal combinada. Hoggart ­contesta menos a materialidade destes comportamentos do que a sua interpretação e os juízos de que são objecto. Porque, ainda que o desenho seja aqui caricatural, nem por isso comporta menos as aparências da ver­dade. Sabe-se, por exemplo, que o superendividamento crónico é uma praga social e que a diversidade alimentar não está presente na ementa habitual dos jovens saídos dos meios populares. Mas a fotografia é enganadora, dado que isola facilmente certos comportamentos criticáveis do conjunto de um modo de vida e, sobretudo, não proporciona o princípio explicativo das atitudes estigmatizadas."